Crítica

Ao citarem as injustiças históricas do Oscar, é normal afirmarem que dois dos maiores cineastas de todos os tempos, Alfred Hitchcock e Charles Chaplin, estão entre os muitos realizadores que nunca foram premiados com a cobiçada estatueta dourada. Porém, se no caso do diretor de Psicose (1960) esta é uma meia verdade – Hitch, de fato, nunca ganhou numa categoria competitiva, mas recebeu um troféu honorário por sua carreira em 1968, além de ter tido o seu Rebecca: A Mulher Inesquecível (1940) reconhecido como Melhor Filme do ano – com Chaplin essa situação é ainda mais nebulosa. Isso porque, no fim de sua carreira, ele somava três estatuetas na estante! Ok, nenhuma era de Melhor Direção ou Melhor Ator. Mas esses eram apenas alguns dos talentos deste artista multifacetado. E muito antes de ter ganhado como Melhor Trilha Sonora por Luzes da Ribalta (1952) ou ter sido saudado com aplausos de uma multidão em pé, por quinze minutos, quando apareceu para receber o seu troféu pelo conjunto da carreira em 1972, ele foi premiado na cerimônia inaugural da Academia, em 1928, com um troféu honorário por sua versatilidade como ator, roteirista, diretor e produtor. E tudo isso, por qual filme? Justamente O Circo, aquele que, curiosamente, viria a ser um dos mais subestimados de sua carreira.

E por que, afinal, O Circo acaba sendo um dos trabalhos menos incensados de toda a filmografia de Charles Chaplin? Uma das questões, por exemplo, pode estar relacionada à sua posição temporal dentro da obra do autor. Isso porque este filme foi feito logo após o impecável Em Busca do Ouro (1925), talvez o ápice de sua genialidade, e imediatamente antes de Luzes da Cidade (1931), provavelmente um dos contos mais emocionantes e de maior apelo com o público, dentre todos os oriundos de sua mente criativa. Mas há outros motivos, é claro. Há de se lembrar, também, do quão conturbada foi a sua produção, envolvendo incêndios, refilmagens, atrasos, brigas na justiça, cenários dispendiosos e gastos muito além dos previstos. O processo todo foi tão traumático que em sua autobiografia, Minha Vida, lançada em 1965, Chaplin se refere uma única vez ao projeto, e ainda assim de forma ocasional: “(...) minha mãe passou muito bem nos dois anos seguintes. Mas quando filmava O Circo, recebi aviso de que ela estava mal”. E era isso. Nenhuma outra palavra sobre o longa que lhe valeu seu primeiro Oscar, foi um dos seus maiores sucessos de bilheteria e lhe consumiu dois anos de esforços.

É de se imaginar quais as muitas razões que levaram Chaplin a, ainda que inconscientemente, deixar O Circo de lado. O mais provável, no entanto, é que tal atitude tenha sido motivada por ressentimento. E não, exatamente, em relação ao filme. Este, se acredita, seja o exato resultado do seu empenho e ambições originais. Sua mágoa, portanto, talvez estivesse voltada a quem o recebeu, ou seja, público e crítica. E isso porque, ainda que aplaudido e laureado, muito se falou que este seria um dos seus trabalhos “menores”, mais leves e inconsequentes. A trama, por suposto, é bastante simples: vagabundo – Carlitos, quem mais? – ao fugir da polícia por um crime que não cometeu, acaba indo parar no meio do show circense e, sem se dar conta, faz o maior sucesso. O dono do espetáculo, percebendo o fenômeno que tinha em mãos, o contrata como auxiliar, pagando-o uma miséria, uma vez que ele desconhece seu real valor. E este só aceita tais condições por estar apaixonado pela amazona que se apresenta no local, ainda que ela própria esteja de encantos pelo trapezista.

Esse fiapo de argumento, no entanto, é palco perfeito para Chaplin fazer o que sabia melhor dentro do estilo de comédia que o formou enquanto artista, aquela batizada como slapstick, ou seja, o bom e velho pastelão. Durante toda a década de 1910, era justamente isso que ele fazia nos diversos curtas que estrelou. Por que não aproveitar muitas dessas ideias, portanto, em um longa-metragem? E assim o vemos protagonizando momentos que fizeram história e viraram clichê no gênero, desde a típica torta na cara – sim, ele assim o faz, e sem temer perder o respeito da audiência – até reinventando outros esquetes clássicos, como o do Guilherme Tell (os dois palhaços, um com a maçã na cabeça e o outro com um arco e flecha fazendo mira na fruta). Mas ele vai além, improvisando com objetos banais (como nas sequências do labirinto de espelhos ou do truque da barbearia), animais selvagens (a cena com o leão é antológica) ou mesmo em números mais elaborados (com os macacos na corda bamba é o ápice de sua genialidade).

Chaplin decidia começar um novo filme motivado apenas por um sentimento, uma emoção. A partir dessa vontade, reunia seus colaboradores habituais – elenco, técnicos – e ia montando o humor e a história a ser narrada. Com O Circo não foi diferente. Porém, o desenrolar dos acontecimentos em meio à sua realização foi tão traumático – em certos momentos, durante o polêmico divórcio de Lita Grey, ele chegou a ser acusado de abusador de menores nos jornais – que um pouco deste pesar, inevitavelmente, acabou sendo transferido para a sua arte. É por isso que, assim que ele conquista a garota, decide abrir mão dela quase sem motivos. O final feliz, parece, estava destinado aos outros, e não ao inocente vagabundo sem eira nem beira, condenado a vagar sozinho, sempre rumo a uma nova aventura, porém sem se ligar a nada nem a ninguém. Talvez esse fosse o segredo do seu irresistível carisma e felicidade de milhares que o seguiam e admiravam. Menos o próprio, um eterno solitário, o palhaço triste e melancólico que fazia o mundo sorrir. Todos os holofotes poderiam estar voltados para ele, mas no final das contas, era quem estava sozinho no picadeiro.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *