Crítica

Acredito, de forma silenciosa e praticamente solitária, na necessidade de revisão do termo que designa hoje o Cinema Expressionista. Como a conversa é longa, e possivelmente até mais árdua, trago três considerações que se configuram na forma de dois rápidos exemplos e numa ilustração – o clássico O Anjo Azul – motivo maior deste texto.

A primeira motivação atende pelo pensamento arbitrário, muito comum no “engavetamento” proporcionado pela periodização, pela classificação dada a partir de determinado período como, por exemplo, “cinema da década de 20”. Se não bastasse a problemática da definição datada, a proposta esbarra na completa ausência de método ou na de características que sinalizem agrupamento, não deixando de representar, assim, algo mais que a pura intuição daquele que argumenta. A segunda, tão simplista quanto redutiva, se por um lado resolve o problema anterior da precisão, o faz mal e aquilo que a ascende também a rui. Seria, portanto, toda a produção cinematográfica silenciosa alemã do período anterior à segunda guerra. Diante dessas lacunas, da definição sem vigor, tudo é permitido. Desde a negação do movimento expressionista como escola – afirmação baseada na suposta falta de união do projeto artístico – até o exagero facilitado de rotular como expoente obras sucessoras, apenas influenciadas.

A ilustração prometida vem pelo filme de Josef von Sternberg baseado em Profesor Unrat, romance do alemão Heinrich Mann. O Anjo Azul (Der Blaue Engel) conta a história de Immanuel Rath (Emil Jannings), professor de uma renomada instituição de ensino alemã que, ao conhecer a artista de cabaré Lola Lola (Marlene Dietrich), acaba nos reveses da paixão e do sucesso; a desilusão e o fracasso.

Instigado pela fotografia de uma mulher sensual a circular em sua sala de aula, Rath decide conhecer pessoalmente o local frequentado por seus alunos. Ao visitar O Anjo Azul, o único objetivo de repreender os jovens resultou numa punição às avessas quando a personagem de Dietrich entra em cena. Se para os demais homens que freqüentavam a casa, Lola valia somente pelos dotes físicos e pela “companhia”, o professor, manipulado por uma ingenuidade somente explicada por certa abstração possível no mundo do conhecimento alienado, reconhece nela uma pureza não menos digna de suscitar os bons tratos destinados a uma dama. A paixão repentina, antagonicamente intensa no homem representante do rigor e do distanciamento da ciência, proporciona ao espectador, além da cômica cena da devolução da peça íntima, as sutilezas das elipses na primeira noite de ambos.

Os detalhes que Sternberg apresenta para ilustrar seus personagens são de tamanha riqueza que merecem a tela e não as linhas. Contudo, não me contenho em deixar de apresentar três cenas que mesmo não abrangendo o todo, exemplificam a construção minuciosa da composição. As duas primeiras cenas que apresento tem função de provocar contraste, aqui e no filme. Ainda que exista algum receio quanto ao sucesso das mesmas, pois, quando não esquecida por sua trivialidade, a primeira cena nos mostra uma empregada sisuda a convocar o professor Rath para o desjejum. A atividade do cotidiano também serve aqui para marcar as pequenas passagens da morte de um pássaro, rapidamente incinerado, e do sofrível peso da solidão refletida na bebida com pouco açúcar. Mais adiante, Sternberg precisa convencer o público de que a relação de Immanuel e Lola, tão instantânea, não é banal. Para isso, nada melhor que retomar a situação de solidão inicial e modificá-la.

Assim, encontramos a radiante presença de Lola suplantando o semblante carrancudo do professor e as manhãs medíocres recebem, pela bebida açucarada e o cantar dos pássaros, nova perspectiva. Definitivamente, tal trabalho no encaixe das cenas, traduzindo em imagens a condição psicológica dos personagens, aponta para a grande sensibilidade presente nas obras de Sternberg, assim como para a modesta demonstração de domínio do meio de expressão.

Não para menos, meu terceiro exemplo se compõe pelo mais puro equilíbrio entre a representação visual, preponderante na época, e o diálogo, recurso ainda a engatinhar nos sets de filmagem. Enquanto alguns diretores receberam a fala como discurso dominante, preenchendo rolos e mais rolos de diálogos, a consciência fílmica aqui presente impede o mesmo. Na cena em que abre a mala de Lola e enxerga suas antigas fotos, Jannings, frente ao inegável incômodo proporcionado pelo passado, contesta do porquê de guardá-las. Coberta unicamente por uma cortina, Dietrich, sem hesitar e compondo uma das mais memoráveis cenas do cinema, exibe um sorriso tão dissimulado quanto a gargalhada perante o pedido de casamento. Nenhuma palavra venceria tais atitudes.

Neste momento o público percebe que a relação do casal vai mal. A preocupação de Rath com o dinheiro e o desemprego é visível e os sorrisos de antes são anulados pela sisudez das expressões e a tensão presente nas conversas. Mesmo assim, desconfio que poucos possam imaginar onde o filme nos levará.

Abre-se, então, a cena com a face rígida e nervosa de Rath sendo cuidadosamente pintada. Será que compreendemos bem? Seria realmente o professor Immanuel Rath a pintar-se como um artista de cabaré? Inequivocamente a resposta é sim e não. Se não nos enganamos com relação a quem nos é apresentado, contudo, de nenhuma forma estamos frente a frente com o mesmo homem. O confiante e orgulhoso professor de outrora agora é digno da mais completa comiseração, deixando estampado na tinta facial a tragédia e o ridículo de sua trajetória. Mas a tortura psicológica do personagem só terá fim mais adiante, quando o mesmo é obrigado a retornar para O Anjo Azul, desta vez como um dos palhaços da companhia.

Todo o declínio do protagonista vivido por Jannings tem como acompanhantes câmera e sonoplastia da mais alta qualidade. Das inúmeras contribuições técnicas importantes, pode-se destacar a utilização combinada de movimento e perspectiva, magistralmente empregados na simbólica libertação da cena final.

Lançado em 1930, O Anjo Azul não somente se tornou excepcional como foi a primeira das sete produções da dupla Josef von Sternberg e Marlene Dietrich. Esta atriz, a partir daqui, incorporou-se definitivamente ao cinema e trilhou um brilhante caminho, trabalhando em outras cinqüenta produções. Assim como em tantos outros filmes, O Anjo Azul abriga influências do expressionismo, como, por exemplo, o jogo de luz e sombra, porém está longe - também no sentido de muito a frente - do movimento alemão.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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