Crítica

A cineasta Penny Lane aborda um personagem bastante controverso e curioso em Nuts!. O Dr. John Romulus Brinkley, que vivia numa pequena cidade norte-americana, mais precisamente no Kansas, alardeou em 1917 a pretensa descoberta da cura da impotência e da infertilidade masculina. O tratamento inusitado consistia em transplantar parte de testículos de bodes nos homens acometidos pelos distúrbios. Ao invés de seguir uma cartilha mais ortodoxa, Lane se vale de dramatizações animadas, variando a técnica de uma passagem para a outra. A estrutura do filme se fundamenta na alternância entre os fatos narrados pela voz, não raro maliciosa, de Gene Tognacci e as encenações dos diversos episódios que marcaram a trajetória singular de Brinkley. Andando em paralelo com o caráter informativo, há um tom de chiste que, antes de buscar a comédia pura e simples, serve para expor o ridículo e o absurdo que permitiram a ascensão de um homem cujas habilidades eram tão duvidosas quanto sua índole.

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O que vemos na tela é um encadeamento orgânico, a despeito da heterogeneidade de fontes e recursos. Colagens, imagens de arquivo, as já mencionadas animações e áudios recuperados da época, são alguns dos dispositivos utilizados na construção dessa narrativa instigante e espirituosa. A pegada de Lane é essencialmente leve, porém dura quando necessário. As cada vez mais famosas propriedades curativas, oriundas de métodos amplamente contestáveis, tornaram Brinkley um homem poderoso e respeitado em sua região. O longa-metragem ressalta, ainda, a capacidade empreendedora do médico, o pioneirismo na utilização do rádio como meio para massificar mensagens comerciais e edificar uma imagem pública que incidisse positiva e diretamente nos negócios. De posse do microfone e das ondas de longo alcance, ele solidificou seu império até não poder mais ser ignorado, sobretudo pelo crescente número de detratores.

Adjacente à exposição direta dos acontecimentos, uma reflexão acerca da credulidade do público questiona constantemente até que ponto é possível ir e em quais absurdos estamos dispostos a acreditar quando frente a uma situação desesperadora. O sucesso de Brinkley só foi possível porque os pacientes seguiam seus conselhos médicos e os ouvintes obedeciam às suas prescrições, inclusive as comportamentais. Mesmo que seja muito direto e sucinto, o roteiro de Nuts! abrange uma gama variada de assuntos que circundam a folclórica figura do Dr. Brinkley, abrindo grande espaço para a briga simultânea dele contra os órgãos médicos e de imprensa. Acusado de charlatanismo, de praticar medicina irresponsavelmente, sem provas concretas da eficácia de suas técnicas estranhas ou dos elixires que mais adiante foram lançados como alternativas aos processos cirúrgicos, ele foi levado literalmente ao tribunal.

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As qualidades de Nuts! não se reduzem à maneira eficiente com que ele mescla diversas possibilidades de cinema, nem tampouco à graça que permeia a trama descortinada, mas também diz respeito às questões propostas, seja nas entrelinhas ou abertamente. Ética, médica e jornalística, o poder dos meios de comunicação, entre eles o da alienação, são alguns dos temas discutidos a partir da biografia repleta de ocorrências curiosas e impressionantes relativas ao Dr. Brinkley. O julgamento, visto totalmente em animação, como qualquer excerto redivivo do passado, é um dos pontos altos do filme, já que as revelações feitas em meio a acusações e defesas potencializam aquilo que foi dito e/ou sugerido até então. A cineasta se vale da mistura de linguagens, o que dá personalidade à realização. Essa singularidade, contudo, não acarreta uma ingerência demasiada da forma sobre o conteúdo. Penny Lane estabelece uma boa convivência entre essas duas esferas que, portanto, trabalham em plena sintonia.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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