Crítica

Gravações com mais de quinze anos foram retomadas pelo diretor Nicolás Avruj para a construção de Nós, Eles e Eu. A viagem que ele empreendeu por Israel em 2000, antes da queda das torres gêmeas ou da Primavera Árabe, tinha como intuito principal a visita a um primo considerado irmão. O desencontro gerou um vácuo de significância, afinal, sem alguém conhecido para guia-lo pelo país de onde seus antepassados vieram, restou-lhe a errância, em princípio destituída de muito objetivo, mas logo revestida de uma importância investigativa que transcendeu a esfera pessoal. A inquietação do, na época, jovem adulto com uma câmera na mão sucede as primeiras imagens feitas no locai, estas evidentemente fruto de um olhar curioso, estrangeiro e distanciado. Aos poucos, a mirada se direciona como que instintivamente às questões históricas que permeiam o conflito entre israelenses e palestinos. Foram necessárias quase duas décadas para o registro virar filme. O material ganhou, então, um sentido propiciado pelo espaçamento temporal e pela maturidade do diretor.

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Nicolás Avruj é também o narrador do documentário. Suas palavras, que nos guiam, carregam o peso da experiência vista em retrospectiva, principalmente o aspecto transformador dos praticamente noventa dias em que ele transitou por territórios distintos, colhendo depoimentos próximos de bate-papos informais, nos quais se comprova a força da empatia. Questionador, Nicolás percorre as ruas de Tel Aviv testemunhando toda sorte de ocorrências, do simples cotidiano do comércio local aos atentados terroristas com homens-bomba ou algo que os valha. Em Nós, Eles e Eu, o amadorismo da imagem, a falta de cuidado estético com o enquadramento, favorece a sensação de proximidade entre o espectador e o artista que confessa suas contradições, que reflete ancorado nas vivências, sobretudo nas que tangem aos componentes propulsores de uma guerra lamentada por uns e celebrada por outros como traço cultural e, por isso mesmo, justificável.

Nós, Eles e Eu é profundo em sua aparente despretensão. O andamento não comporta a transição entre os âmbitos macro e micro, pois eles estão essencialmente imbricados desde o início. Essa natureza é denunciada pela exposição simultânea das situações particulares, ou seja, daquilo que diz respeito às ações e reações de Nicolás, e da representatividade dos depoimentos e das constatações ao entendimento amplo da briga entre os vizinhos. No território palestino o diretor entra em contato com a intimidade do lado “inimigo”, chegando à conclusão de que os seus também têm grande parcela de culpa pelo clima de instabilidade que toma conta daquelas regiões. Em Gaza ele faz amizade com um palestino que, a despeito da alegria e do bom-humor apresentados no mais das vezes, verbaliza rancor dos judeus, a quem acusa de comportamento assassino e cruel. Gradativamente o diretor demonstra uma percepção menos afetada pela tradição e mais calcada em sua própria observação.

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Volta e meia surgem no longa-metragem indícios de que as novas gerações querem paz. Muito embora determinados jovens declarem à câmera um forte amor pela guerra, alguns, na contramão, externam o anseio pelo dia em que a disputa se encerre e o passado seja enterrado pelo bem da convivência harmoniosa no presente e no futuro. Nós, Eles e Eu é uma investigação íntima da singularidade de povos que digladiam. Nas condições de guia e de narrador está um artista que utiliza seu meio de expressão como instrumento de compreensão, fazendo dele arma contra o belicismo e a intolerância entranhados numa zona em que a morte é infelizmente corriqueira. Nicolás Avruj exuma episódios marcantes que atestam, ao invés de uma possível classificação cartesiana de mocinhos e bandidos, a inclinação do humano à violência, bem como os efeitos nefastos tanto do extremismo quanto da incapacidade de se colocar no lugar do outro.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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