Crítica

No primeiro ato de Nocturama, de Bertrand Bonello, os protagonistas, jovens franceses de origens étnicas diversas, colocam em prática um plano para explodir alguns prédios simbólicos dos poderes político e financeiro do país. Estamos na Europa contemporânea, profundamente atingida pela crise econômica iniciada em 2008, e as ações desses garotos e garotas estão conectadas a esse contexto. Mas Bonello não se dedica a investigar o conteúdo político de seus personagens, para, quem sabe, questioná-los em algum grau. Não cabe aqui nenhum tipo de deslegitimação ideológica desses jovens, nenhum tipo de consideração sobre uma suposta imaturidade política ou falta de clareza nas razões de suas ações: essas ações, em si, são suficientes para o diretor caracterizá-los como seres altamente políticos.

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É interessante notar como Bonello se afasta aqui de um cinema que, tendo pretensões mais comerciais, aborda o tema da luta armada em países da América Latina e da Europa nas décadas de 1960 e 1970, geralmente fazendo um juízo de valor negativo sobre personagens guerrilheiros por considerá-los politicamente vazios, mero repetidores de jargões das esquerdas daquele período. Poderiam ser citados nesse sentido desde filmes brasileiros sobre a ditadura militar – Pra Frente Brasil (1982), O Bom Burguês (1983), O Que é Isso, Companheiro? (1997) e Zuzu Angel (2006) são bons exemplos – até o recente alemão O Grupo Baader Meinhoff (2008).

Não tendo, portanto, que se preocupar com analisar profundamente a ideologia de seus personagens, Bonello pode se dedicar nesse primeiro ato a fazer um belíssimo exercício de construção de tensão, através de idas e vindas no tempo e da apresentação de um mesmo episódio por diferentes pontos de vista, que vão entregando ao espectador as minúcias do plano que está sendo executado. É no segundo ato de Nocturama, passado quase todo numa imensa loja de departamentos que serve de esconderijo para os protagonistas após o sucesso dos atentados, que o diretor se permite aproximar mais dessas figuras, conhecê-las a fundo.

É neste ponto em que Bonello brinca novamente com o tempo, estendendo-o ao máximo no intuito de reproduzir o tédio experimentado por jovens que têm de passar uma noite inteira acordados e escondidos num ambiente fechado. Emerge a contradição entre os ataques realizados contra símbolos do capital e do poder e o esbaldar-se no consumo dentro da loja, mas ela é desconstruída pelo elemento de brincadeira presente nessa exploração de objetos, roupas, eletrônicos. O que mais se poderia esperar de pessoas, talvez de qualquer idade (vale lembrar a presença em cena de dois moradores de rua já idosos, que também ocupam o espaço da loja e se dedicam ao consumo), numa situação como essa?

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Por fim, há o epílogo de Nocturama, filmado por Bonello como um crudelíssimo filme de horror. A implacabilidade da força que desmorona sobre as cabeças dos jovens protagonistas, a ausência de qualquer possibilidade de diálogo diante de um algoz muito mais forte, não deixam dúvida sobre a posição política assumida pelo diretor. Numa Europa que se equilibra cuidadosamente sobre um cada vez mais frágil status quo político e econômico, numa França em chamas após ataques brutais do fundamentalismo islâmico e que tem que lidar com o recrudescimento do nacionalismo de direita, Nocturama faz opção, sem ser didático ou panfletário, pela ação de uma juventude plural e potente.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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