Crítica

Ao surgir como responsável pela abertura da 65a edição da Berlinale, Isabel Coixet alimentou suspeitas de que estaria retornando ao início da carreira, quando Minha Vida Sem Mim (2003), A Vida Secreta das Palavras (2005) e Fatal (2008) – a contestada adaptação do texto de Philip Roth – emplacaram o nome da diretora catalã no cenário cinematográfico mundial. Contudo, o olhar que conquistou atenção de crítica e público por equilibrar sensibilidades estética e psicológica enveredou por um inimaginável caminho dramático. As características iniciais foram deixadas de lado e o que se viu posteriormente culminou no sofrível Yesterday Never Ends (2013).

Inspirado em fatos reais, Ninguém Deseja a Noite traz Juliette Binoche como Josephine Peary, uma mulher de meia idade no início do século XX obstinada por reencontrar o marido. Aventureiro, Robert Peary deixou o conforto da casa em Washington para realizar o sonho de chegar a uma das partes mais inatingíveis do Polo Norte. Sim, é sob três dos principais valores norte-americanos (o idealismo, o individualismo e a obstinação) que o roteiro de Miguel Barros se alicerça. Nele, a apresentação da personagem de Binoche não poderia ser mais marcante. Camuflada em meio à neve, ela aponta o rifle para um urso e o atinge. Um risco vermelho rasga o branco do ártico e preenche o cenário desolador. Tombar do animal selvagem é a vitória da civilização.

Ancorada na expectativa de chegar até onde estaria o marido, Coixet leva o filme com intensidade dramática até parte do segundo ato, quando surge Alaka (Rinko Kikuchi). A jovem esquimó, que se envolveu com Robert quando o “homem forte” esteve de passagem, dividirá a espera com Josephine da maneira mais turbulenta possível.

A partir desse momento, a direção de Coixet perde o domínio da intensidade do filme ao querer entregar ao público um conjunto dramático profundo. A rivalidade da esposa de Peary com Alaka conforma-se a um embate óbvio – incessante e improdutivo – entre diferentes visões de mundo, entre o preconceito dos americanos com os nativos da terra, entre o mundo burguês-desumano e a sábia intuição ancestral. O enquadramento sistemático dos personagens vai na mesma linha da direção de arte de Alain Bainée, que podendo fazer Binoche abrir mão gradativamente dos trajes pomposos da cidade em favor das roupas de frio, prefere realçar insistentemente a vaidade da protagonista. Nada pode ser mais burguês do que reclamar da burguesia.

O panorama de conflito sofre uma mudança à medida que Josephine descobre o nível de envolvimento de seu marido com Alaka. O roteiro de Barros, que não havia poupado dores à protagonista, oferece uma oportunidade para que o ódio de Binoche seja redimido na forma de amor – em especial, como paliativo pela improvável volta do marido. O recurso, porém, encontra Coixet de volta ao tom melodramático. A marca dos últimos anos da diretora retorna como uma fantasma, faz o filme deixar a sensibilidade em segundo plano e tornar-se uma sequência de momentos de dor. Por vezes, passagens tão constrangedoras a ponto de nem mesmo a sólida atuação da protagonista conseguir salvar.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
avatar

Últimos artigos deWillian Silveira (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *