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Sinopse

Um inspetor persegue ferrenhamente o poeta chileno Pablo Neruda no final da década de 1940 por conta do fato do artista ser um membro emérito do Partido Comunista.

Crítica

O convencional passou longe da concepção de Neruda. O filme retrata a perseguição verídica ao poeta Pablo Neruda (Luis Gnecco) no fim dos anos 1940, mas valendo-se de uma chave essencialmente lírica, não se atendo demasiado aos acontecimentos tal e qual eles se deram. Ao “trair” deliberadamente a sisudez factual, o cineasta Pablo Larraín dá ares de poesia à trama, aproximando-se do universo em que o protagonista se fez gigante. Essa inclinação vertiginosa pela estrita ficção como instância de potência simbólica parte da escolha do narrador, principalmente pela forma dele se colocar frequentemente em estado de fascinação diante daquele que deve por obrigação capturar. Óscar (Gael García Bernal) é o inspetor moldado, enquanto personagem, para soar propositalmente como uma caricatura saída dos romances policiais baratos que tanto divertiam o fugitivo em meio às suas aventuras clandestinas pelo Chile. Para Larraín, a lei, então representada pelo filho bastardo do meretrício, é digna de zombaria, mas guarda as tragédias que acabam lhe dando poder.

Um dos elementos mais interessantes de Neruda é a subversão constante da relação espaço-temporal. Em diversas sequências, as pessoas mantêm diálogos contínuos por cenários intercalados. A montagem, mais precisamente cada corte, determina uma realocação física não necessariamente acompanhada pela interlocução que prossegue sem interrupções. O bem-vindo estranhamento instaura na narrativa um crescente desapego da linearidade. Ainda que acompanhemos mais ou menos em percurso reto os eventos que marcaram a repressão intensiva aos comunistas chilenos – dentre eles obviamente o mais famoso, também por ser senador da república –, o esqueleto do roteiro não dá subsídios ou espaços para nos estabelecermos de maneira confortável numa linha cronológica. Ao invés de focar suas atenções apenas em Pablo Neruda, homem politizado que gostava das palavras e das farras com belas mulheres, Larraín destaca um antagonismo superficial, pois gradativamente o perseguidor se identifica com o seu objetivo, inclusive no nível da criação.

Em Neruda, inicialmente, o poeta remete à utopia, enquanto o policial simboliza a ignorância, por vezes em seu viés mais ingênuo, o que acaba gerando empatia. Para Óscar, caçar Neruda é, antes de qualquer coisa, fazer jus ao legado do pai que lhe reconheceu herdeiro por força da lei. Aos poucos, porém, ele vai sendo contaminado pelos ideais do alvo, mesmo que Larraín evite desenhar um perfil laudatório do poeta, dando atenção a excessos e vaidades. A necessidade de deixar um rastro reconhecível, de tornar a busca nacional um espetáculo grandioso, digno das grandes obras, inclusive das suas nascidas na máquina de escrever, mostra não somente um traço da personalidade de Pablo Neruda, mas e, sobretudo, a vontade do cineasta de inserir algo que reforce o imperativo da ficção. Ao fugir de maneira singular, Neruda “cria” narrativas, reservando para si certos papéis e distribuindo, conforme lhe convém, funções específicas aos demais “atores” desta ciranda que se vale do ordinário, como os traços de banalidade da trama policial, para aspirar ao sublime.

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Neruda não é propriamente uma cinebiografia, ao menos não no sentido tradicional. Ainda que se reporte à História, Pablo Larraín conduz a exumação por um terreno poroso, aberto às influências do próprio meio no qual se insere, ou seja, o cinema. A abundância de flares e de contraluzes enche a tela de luminosidade em repetidas ocasiões, cegando-nos momentaneamente, deflagrando abertamente o aspecto autorreferente. No âmbito político, o longa-metragem tangencia os desmandos e a austeridade do governo federal da época, alvo prioritário do Partido Comunista, se concentrando pontualmente nos homens do povo, do rapaz designado para servir como guarda-costas de Pablo Neruda ao dono de terras que resolve ajuda-lo em protesto. A imponência do protagonista, sua aura de magnificência, paradoxalmente ofusca e reforça a representatividade do pretenso algoz que segue suas pistas literárias. Dois mundos em aparente choque, fundidos exatamente por conta da poesia, registro emulado por Larraín na linguagem inventiva e engenhosa deste belíssimo filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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