Crítica

Os conflitos raciais configuram um problema social cada vez mais latente na Europa, em especial na França, onde episódios ocorridos nos últimos anos – como a série de ataques de novembro de 2015, em Paris, o incidente na sede do jornal Charlie Hebdo, além de confrontos cotidianos crescentes entre polícia, imigrantes e extremistas – ganharam as manchetes do mundo todo. É ecoando o clima de tensão que acompanha esses fatos, que se desenvolve a história de Não Sou Um Canalha, do francês Emmanuel Finkiel, que neste novo longa propõe um envolvente estudo de personagem, buscando também se aprofundar no tema de como as pressões da sociedade contemporânea podem avivar as tendências agressivas e à barbárie em determinados indivíduos.

Evitando julgamentos precipitados, Finkiel acompanha um protagonista complexo e pouco agradável, sem encaixá-lo nos arquétipos de anti-herói ou, mesmo diante de seus atos condenáveis, no de vilão. A figura em questão é Eddy (Nicolas Duvauchelle), homem cuja autoestima se encontra no ponto mais baixo: desempregado, separado da esposa, Karine (Mélanie Thierry), e enfrentando o alcoolismo. Certa noite, ao acompanhar uma garota que conhecera num bar, Eddy repreende dois meninos que roubavam o rádio de um carro e acaba sendo esfaqueado por um membro de outro grupo de moradores locais. Levado pela polícia para reconhecer seu agressor, ele acusa, injustamente, o jovem Ahmed (Driss Ramdi), cujo rosto lhe parecia familiar por tê-lo visto em um vídeo durante uma entrevista de emprego recente.

As falhas de caráter de Eddy são evidentes desde o princípio, e o diretor nunca as esconde. Porém, mesmo com seu temperamento violento, rancoroso e ciumento, ele não deixa de apresentar traços de humanidade, particularmente no trato com seu filho (Johan Soulé), e nas demonstrações do afeto ainda mantido pela ex-mulher. Dessa forma, Finkiel visa retratar Eddy como um reflexo dos valores de boa parte do mundo que o cerca, e que se mostram mais comuns do que podemos, ou queremos aceitar. O talentoso Duvauchelle carrega em suas feições todo o peso de alguém cansado do fracasso e que, mesmo desejando mudar a imagem que os outros fazem dele, se revela incapaz de se adequar às exigências do modelo de sucesso individual estabelecido pela sociedade.

Essa inadequação surge já nos primeiros planos, quando Eddy observa os executivos engravatados com uma mescla de desdém e inveja, algo repetido posteriormente ao ofender gratuitamente o motorista ao lado por ter um carro melhor. Dentro desse panorama, a experiência de quase morte se transforma numa oportunidade de retomada, já que Eddy passa a ter novamente a atenção de Karine e do filho, que o chama de herói. A reconstrução do núcleo familiar, incluindo a conquista de um emprego na mesma loja de departamentos onde trabalha a esposa, porém, começa a desmoronar devido a seus instintos autodestrutivos e sua ânsia por se provar – notada desde quando resolve trocar de TV pelo status material ou no fato de não aceitar por muito tempo o cargo de operador de empilhadeira, exigindo do chefe a quem abomina, em razão do relacionamento próximo mantido com Karine, uma vaga como vendedor.

Como um animal enjaulado tentando se libertar – vide as constantes escapadas para fumar na varanda ou saindo do carro no engarrafamento – Eddy parece sufocado pela própria insegurança. Um sentimento que se apresenta também como possível motivo para a acusação sem convicção feita a Ahmed, pois admitir seu erro representaria mais uma amostra de incompetência, uma nova humilhação. Mas essa não é a única possibilidade aberta por Finkiel, já que há também a questão do racismo intrínseco em diversas esferas sociais, a começar pela polícia, que sugere que o nome escutado por Eddy seria Ahmed, e que trata o acusado com truculência. Esse preconceito também é insinuado no olhar do protagonista sobre o estrangeiro como alguém que está “ocupando o seu lugar”, conquistando o emprego que almejava.

A força desse retrato construído por Finkiel vem, em parte, do fato de que o público, mesmo que se recuse admitir, talvez enxergue em Eddy, em maior ou menor escala, traços das próprias fraquezas. Contudo, é mesmo a atuação intensa de Duvauchelle que garante o êxito da empreitada. O ator transmite todo o desequilíbrio causado pela atmosfera opressora que abraça o personagem - realçada pelas batidas eletrônicas da trilha sonora - demonstrando também uma química natural com a ótima Mélanie Thierry, seja nos embates mais energéticos ou na delicadeza de cenas como a da reconciliação. Em meio a tantas qualidades, o longa talvez se exceda em algumas escolhas, como na reverberação da conduta de Eddy sobre seu filho, mas nada que comprometa a consistência do conjunto.

Negando a saída da redenção, mesmo que o personagem principal tenha lapsos de consciência, Finkiel faz com que sua gradativa escalada à psicopatia soe genuína, culminando na impactante explosão de violência do ato final que, embora até certo ponto previsível, surge como algo inevitável. Sem crucificar ou vitimizar Eddy, o cineasta oferece uma reflexão sobre como sua história não está distante da realidade que acompanhamos diariamente, com a intolerância e o extremismo disseminados pela internet, por exemplo. Uma noção verdadeiramente perturbadora e que ressoa após os créditos finais.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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