Crítica


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Sinopse

Uma bela a talentosa dançarina se junta a uma trupe de vaudeville, o diretor se apaixona por ela e esse sentimento pode causar uma série de problemas de funcionamento na equipe.

Crítica

Os olhos da ambiciosa Liliana (Carla Del Poggio) brilham de deslumbramento pelo espetáculo que se desenrola no palco à sua frente. O show de variedades tem um homem que canta a saudade de seu ganso, bailarinas em trajes de banho que dançam no ritmo animado da banda, e toda sorte de outros números que encantam a plateia repleta de adultos e crianças. Mulheres e Luzes, primeiro longa-metragem dirigido por Federico Fellini, numa colaboração com o então já experiente Alberto Lattuada, parte desse fascínio pelo mundo do entretenimento, sensação que exclui a realidade muitas vezes difícil que se impõe nos bastidores. Logo que a apresentação acaba, os artistas precisam lidar com o confisco da arrecadação da noite como pagamento de uma antiga dívida. Em troca da arte, ganham nada esses mambembes que exibem talento em casas muitas vezes decrépitas, para públicos nem sempre receptivos ou ao menos interessados.

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Inebriada pela mística dos holofotes, Liliana decide arriscar para virar uma vedete famosa. Começa por seduzir Checco (Peppino De Filippo), um dos líderes da trupe, até ali comprometido com Melina (Giulietta Masina). A vontade da iniciante encontra ecos na suscetibilidade do homem mais velho. Enredado pela beleza da jovem, ele coloca a perder tudo que construiu, desde a posição na companhia até o noivado com a mulher que não demora a sentir-se ameaçada. Por um golpe do acaso, depois de muita resistência dos novos colegas, Liliana salva o show do fracasso numa cidadezinha que passa a reverenciá-la como grande estrela. É o que basta para ela assumir uma posição intimidante aos demais, já que suas intenções de ser alçada ao estrelato não carregam qualquer senso de camaradagem. Ela não está ali a fim de proporcionar êxito à coletividade, mas sim para zelar pelo próprio futuro, de preferência cercada de adulações, vestida com casacos de pele e, se possível, frequentando os circuitos grã-finos de Roma.

Embora Liliana seja, de fato, essa figura que desestabiliza o todo, trazendo sofrimento à família de artistas que rema contra as dificuldades para manter a união, bem como também a arte circulando, ela não é construída de maneira rasa, delineada como uma vilã ou algo que o valha. Aliás, Fellini e Lattuada prezam pela dimensionalidade dos personagens, pelo enfoque multifacetado. Assim como a ambição desmedida de Liliana não é suficiente para soterrar suas fragilidades, o que faz dela mais complexa e interessante, a falta de escrúpulos de Checco, que determina o martírio principalmente da noiva, não está ali para torna-lo alguém execrável. Em meio às tentativas de montar um novo grupo, de conquistar definitivamente o interesse amoroso, ele deixa exposta sua vulnerabilidade, condição inerente à situação ou à nova conjuntura das coisas. Mulheres e Luzes conserva um tom agridoce, reverente aos que sobrevivem do fazer artístico, ao passo em que mostra, sem fatalismos, o quão difícil e inglória pode ser essa tarefa.

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As goteiras de alguns teatros contrastam violentamente com as festas pomposas, regadas a frutos do mar e champanhes caros. Enquanto muitos se vangloriam do sucesso em celebrações marcadas pela ostentação, outros, tão ou mais talentosos, se viram nas ruas como podem. Liliana não quer propriamente ser uma artista, é seduzida pelo glamour erroneamente associado a quem sobre ao palco. Checco, por sua vez, não hesita em deixar para trás a dignidade, se preciso for, no intuito de garantir a atenção da amada. Em Mulheres e Luzes a comédia se insinua por entre as frestas do drama dominante, mas sempre para ressaltar o ridículo de determinados comportamentos e circunstâncias e, assim, deflagrar a inclinação das pessoas ao erro, a repetir, mesmo após aparentemente terem aprendido a lição, os caminhos tortuosos. Fellini e Lattuada evidenciam a decadência do espetáculo como reflexo da corrosão de certos valores e a ascensão da celebridade à posição de destaque.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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