Crítica

Estamos no começo dos anos 1960. Na medida do possível, é uma boa época para ser músico, especialmente de folk. A não ser, claro, que você seja Llewyn Davis. Nenhuma época é boa para ser Llewyn Davis.

O protagonista, interpretado pelo bom Oscar Isaac em seu papel de maior destaque até o momento, nos é apresentado em uma sequência intimista. O quadro fechado projeta a cumplicidade do rosto do jovem e o microfone. Bastam alguns acordes para que a voz macia e trêmula se unisse à letra doída, característica do gênero. Como em um encontro aguardado há tempo, o resultado toma conta da tela. Na posição de espectadores de uma das muitas apresentações que Davis fará para tentar se firmar, nos convencemos rapidamente do talento do garoto. Mais: acreditaremos nele até o final – ou até que a sorte, a falta dela, nos convença do contrário.

Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum é o conto de um jovem aspirante à cantor. Como costuma acontecer, o protagonista dos filmes dos irmãos Coen (O Grande Lebowski, 1998, e Onde os Fracos Não Têm Vez, 2007) não é um personagem elevado ou especial. Pelo contrário, os tipos são reais, providos de virtudes e vícios que se anulam, longe de serem escolhidos como exemplos morais. Assim também o é Llewyn, que depois de ver o primeiro álbum não emplacar, esbarra em todos empecilhos que a vida pode lhe proporcionar – como se esta os criasse unicamente para atravancar seu caminho. Parte do clássico modelo de homem dos Estados Unidos, movido pelo sonho americano, o personagem avança contra tudo e todos, desamparado como Jó. Passagem emblemática da sua provação é o momento em que Davis procura o médico para abortar o filho da ex-namorada Jean (Carey Mulligan, que aparece pouco, mas suficientemente bem). Ao consultá-lo, descobre que não precisará pagar pela operação, pois a anterior, que foi feita quando estava com outra mulher, na verdade não ocorreu. No último momento, diz o médico, ela decidiu manter a criança. Atônito, o protagonista aceita que quanto mais tenta resolver seus problemas, mais eles se multiplicam. Na cena seguinte, Davis aparece no vagão de metrô, à direita do quadro, sozinho, desolado.

A desconfiança de que as coisas podem não sair como Davis deseja está em cada cena envolvendo o gato Ulisses. Ao acordar em uma das casas em que dorme de favor, o cantor deixa escapar o bichano do anfitrião. Nos primeiros momentos, a situação parece dizer respeito à personalidade do jovem, causando graça. Aos poucos, contudo, percebemos ser uma ironia do destino – e a graça se transforma em uma risonha piedade.

Sem se afastar do estilo que marcou a sua filmografia, os Coen constroem um filme divertido, com humor negro e inteligente, recheado de personagens estereotipados. Talvez Llewyn não fique na memória dos fãs dos diretores por ter a personalidade menos marcante do que a do próprio destino. No entanto, há valentias inúmeras. Ao cantar para o pai uma canção folk que sabia ser da preferência do velho, Davis espera a aprovação que nunca veio; a aprovação que jamais virá. Enfrentar a realidade é difícil. Enfrentá-la como uma injustiça, é de um heroísmo sem tamanho.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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