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Sinopse

Dado a praticar golpes em senhoras ricas, Monsieur Verdoux as mata para ficar com suas heranças. Em casa, sua família sequer desconfia dessa vida dupla do aparentemente distinto cavalheiro.

Crítica

Além de Charles Chaplin, os bastidores de Monsieur Verdoux envolvem outro gigante da história do cinema: Orson Welles. Foi o diretor de Cidadão Kane (1941) quem originalmente escreveu um roteiro, para que Chaplin o protagonizasse, baseado na história real do serial killer francês Henri Désiré Landru, conhecido como Barba Azul, responsável por aplicar golpes em mulheres viúvas, assassinando-as para se apossar de seus bens, no início do século XX. No fim das contas, Chaplin acabou comprando o roteiro de Welles, modificando-o em sua quase totalidade para narrar a trajetória de Henri Verdoux, funcionário de um banco que, após trinta anos de serviços prestados, perde seu emprego devido à Crise de 29 e passa a levar a vida como golpista.

Marcando o início de sua ruptura com Hollywood - por motivos essencialmente políticos – o longa representou também uma virada artística para Chaplin, que finalmente abandonava por completo a figura do vagabundo por ele imortalizada, algo realizado parcialmente em O Grande Ditador (1940), mas cujo personagem do barbeiro judeu ainda guardava certas semelhanças com o tipo clássico que marcou sua carreira. Mantendo o tom de crítica ao cenário sociopolítico – os resquícios da Grande Depressão de Tempos Modernos (1936), a sombra da Segunda Guerra Mundial do citado O Grande DitadorChaplin adota também um tipo de humor mais sombrio, iniciando a projeção com imagens da lápide de Verdoux e a narração em off do personagem sobre suas escolhas em vida.

Seguindo essa introdução, somos apresentados à família da mais recente vítima de Verdoux, em uma espécie de esquete de comédia de costumes, e somente após alguns minutos Chaplin surge em cena na pele do protagonista que, mesmo cometendo atos totalmente condenáveis, emana um enorme carisma. Desde os primeiros planos, o refinamento estético de Chaplin – que além de atuar, roteirizar, produzir e dirigir também compôs a trilha sonora – é notável, especialmente no modo como conduz sua câmera pelos cenários, como o da casa que Verdoux tenta vender. Ou ainda em enquadramentos brilhantes, como aquele da janela do corredor do quarto de outra vítima (Margaret Hoffman), acompanhando a passagem do tempo, o amanhecer, enquanto o crime ocorre fora de quadro.

A construção das piadas é igualmente primorosa, com timing certeiro e diálogos afiados, como os das investidas de Verdoux sobre uma viúva e potencial compradora de sua casa (Isobel Elsom). Chaplin extrai humor até dos detalhes mais sutis, como quando o protagonista serve a mesa do café da manhã para dois, se esquecendo de ter acabado de assassinar sua companhia, ou quando as notas que toca ao piano são acompanhadas pelas batidas da faxineira à janela. Até mesmo nas passagens mais emotivas, como aquela que revela a verdadeira família de Verdoux, a esposa presa a uma cadeira de rodas (Mady Correll) e o filho (Allison Roddan), Chaplin insere ótimas tiradas – a ânsia da mulher do amigo farmacêutico pelo jantar, o cinismo do diálogo em que reprime a violência do filho ao brincar com o gato.

Apresentando uma de suas mais complexas e excepcionais atuações, Chaplin se diverte com as diversas personas de Verdoux – o pai amoroso, o artista sensível, o capitão sedutor etc. – e, por mais que o humor negro domine a narrativa, protagoniza cenas em um tom mais escrachado, particularmente aquelas divididas com a ótima Martha Raye, no papel de Annabella, a amante vencedora da loteria. Sequências hilárias como a do casamento ou quando Verdoux tenta enforcá-la num passeio de barco rendem algumas gags físicas tipicamente chaplinianas, assim como a tentativa de envenenamento sabotada involuntariamente pela criada de Annabella. Outra cena envolvendo um quase envenenamento, por sua vez, possui uma carga bem mais dramática.

O encontro com uma bela garota recém-saída da prisão (Marilyn Nash), cujo marido falecido era inválido, e com quem discute questões filosóficas – amor, suicídio, Schopenhauer – funciona como o gatilho que desperta a consciência de Verdoux. O reencontro dos dois, já às vésperas da Segunda Guerra, com ambos em situações distintas – ele tendo perdido suas ações e a família devido a mais uma crise, ela casada com um rico empresário armamentista – leva ao aprofundamento do teor político do discurso de Chaplin, causador de tanta controvérsia, no ato final. O posicionamento abertamente antibelicista do cineasta foi tomado por muitos como hipócrita, como se ele se valesse dos horrores da guerra para justificar, ou até endossar, as ações de Verdoux.


Porém, o que Chaplin realmente almeja é a exposição da influência do meio sobre os indivíduos, de como a violência das estruturas sociais – regidas pelos políticos, o capital e até a igreja – é refletida no cotidiano. Isso fica claro no modo como Verdoux encara sua sentença, já em um estado de abatimento e melancolia, proferindo frases simbólicas como “Um assassinato faz um vilão, milhares fazem um herói”. Talvez a virada dramática seja um pouco abrupta, e a mensagem exibida de maneira muito literal na cena do julgamento. Mas, ao conceber um plano final tão belo, em que Verdoux exala seu último suspiro ao aceitar o rum que nunca havia provado – aceitando também seu destino – Chaplin, sem oferecer uma simples redenção, reforça através das imagens o poder de suas palavras e da reflexão por elas gerada.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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