Crítica

A premissa de Mistério na Costa Chanel, que traz dois policiais investigando uma série de desaparecimentos num pequeno vilarejo francês, não é exatamente uma novidade na filmografia de Bruno Dumont. Seu filme mais celebrado, A Humanidade (1999), bem como a recente minissérie O Pequeno Quinquin (2014) partem de pontos semelhantes, ainda que, ao menos a princípio, Mistério na Costa Chanel esteja muito mais próximo deste último do que do primeiro.

Por sinal, é interessante observar a virada estética ocorrida na obra de Dumont. A Humanidade é um filme duro, seco, em boa medida naturalista (ainda que em certo momento introduza brevemente um elemento fantástico, transcendental), mas, sobretudo, adepto de uma dramaturgia desdramatizada. Seus personagens e os atores que os interpretam mantêm sempre uma postura apática em cena, distante de grandes rompantes dramáticos – apenas o protagonista, policial responsável por investigar o estupro seguido de assassinato de uma garota de 11 anos, encarnação mais extrema dessa apatia, tem alguns desses momentos (um grito aqui, um beijo desesperado ali, mas ainda assim coisa pouca).

Na construção dos personagens e na condução dos atores em cena, Mistério na Costa Chanel está no extremo oposto. Aqui Dumont aposta no exagero, no cartunesco, em figuras de gestos largos e cujos corpos causam ruídos estranhos, cômicos. O investigador (Didier Desprès), homem extremamente gordo, rola como uma bola duna abaixo para chegar ao local de um crime; o patriarca da família aristocrática que mora na região (Fabrice Luchini) tem um jeito muito peculiar de caminhar e de se mover, produzindo cenas de comédia ao tentar sentar numa espreguiçadeira ou partir um pedaço de carne, por exemplo – o espectador brasileiro talvez encontre na composição de Luchini certas semelhanças com o icônico personagem Zé Bonitinho, criado pelo saudoso Jorge Loredo; e as outras pessoas que compõem o universo filmado por Dumont seguem caminhos semelhantes, inclusive o protagonista, Ma Loute (Brandon Lavieville), que, apesar de introspectivo, aos poucos revela uma natureza monstruosa, que se traduz em rosnados descontrolados.

Trata-se de uma aposta arriscada, cujo resultado nem sempre é satisfatório: sobretudo o humor de Mistério na Costa Chanel não funciona o tempo todo, por vezes soando tolo, talvez pelo excesso de fisicalidade. Mas o intento principal de Dumont, de usar esses exageros para comentar os comportamentos de classe na França do início do século XX, é atingido. O filme consegue ser ferino nesse aspecto, da representação patética e degradada da aristocracia, presente, sobretudo, em Luchini e em sua irmã, vivida por Juliette Binoche, ao olhar temeroso para os miseráveis catadores de mexilhão, vistos pelos de cima e tratados ironicamente pelo filme como monstros, ameaças antropofágicas capazes de destruir o status quo por meio da violência. Nesse sentido, talvez Mistério na Costa Chanel não esteja tão distante dos filmes mais naturalistas do diretor, como A Humanidade ou Camille Claudel 1915 (2013). Há neles, também, esse olhar atento para o lado patético e animalesco do humano, ainda que a partir de outras chaves estéticas.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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