Crítica

A Mesa do Diabo é a tradução inusitada - para não dizer ficcional – para The Cincinnati Kid, filme divisor de águas na carreira de Norman Jewison. Escrito originalmente para Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança, 1969), que desistiu do projeto por atritos com a produção, o convite surgiu a Jewison como a chance de dar um salto de qualidade no passado de comédias românticas, como 20 Quilos de Confusão (1962) e Tempero de Amor (1963). A aposta deu certo. Mais tarde, o canadense seria o diretor por trás do clássico Um Violinista no Telhado (1971).

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O "Garoto de Cincinnati" tem em seu centro Eric Stone, um jogador de pôquer em Nova Orleans. Notavelmente interpretado pelo icônico Steve McQueen, o objetivo do protagonista é vencer o grande nome do jogo local, Lancey Howard, vivido por Edward G. Robinson. A estrutura adotada é tradicional. Nela, o enredo trabalha com o recurso do jovem que precisa superar o mestre na busca por respeito e reconhecimento. Tendo o pôquer como tema principal, Jewison aposta em diálogos fluidos e na edição de ritmo acelerado para movimentar a trama. Em um dos melhores momentos do roteiro assinado por Ring Lardner Jr. e Terry Southern, o tom cômico do passado do diretor vem à tona quando McQueen tenta compreender a admiração que a namorada Christian (Tuesday Weld) nutre pelos filmes tão estranhos do cinema francês. Conhecido por sua postura blasé, o ator investe em expressões mais humanas, facilitando a identificação da plateia com o seu personagem. A fórmula supera a inevitavelmente falta de ação das partidas, e o espectador passa, aos poucos, a se envolver com o aguardado embate entre "The Kid" e Howard.

Adaptado do romance mais famoso de Richard Jessup, A Mesa do Diabo apresenta um panorama abrangente sobre a comunidade dos jogadores profissionais – isto é, aqueles que jogam para viver. Retratada durante a depressão econômica dos Estados Unidos, a ocupação de Stone sofreu mudanças até chegar aos dias atuais. A atividade que era atípica, hoje passou a ser reconhecida como esporte mental. Presente nas grades das emissoras de televisão, o pôquer ocupa visibilidade distinta do mundo underground vivenciado por McQueen. Além do contexto, o próprio esporte se transformou. Os espectadores podem estranhar a versão praticada no filme, a "Stud", suplantada atualmente pela conhecida "Texas Hold’em".

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É possível que os amantes do baralho se sintam mais confortáveis com títulos em que o pôquer é representado de maneira contemporânea, como em 007: Cassino Royale (2006) ou no filme de John Dahl, Cartas na Mesa (1998), com Matt Damon, Edward Norton e John Malkovich no elenco. Contudo, as características históricas somadas à qualidade artística, com os planos ousados do fotógrafo Philip H. Lathrop e a trilha de Ray Charles, são preponderantes para tornarem A Mesa do Diabo o clássico definitivo do mundo do pôquer. Pois na arte, diferentemente do esporte, nem sempre a última mão é aquela que define o jogo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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