Crítica

Melancolia é o mais recente trabalho de Lars von Trier. Não sei se você já viu algum filme do diretor dinamarquês. E se ficou em dúvida, é porque não viu. Von Trier é daqueles cineastas que fazem diferença. Nem tudo que faz é bom, nem todos gostam ou admiram. Mas em algo ninguém discorda: é impossível ficar indiferente a qualquer uma de suas histórias. E ele provoca mais uma vez. O filme passou no último Festival de Cannes – Kirsten Dunst ganhou a Palma de Melhor Atriz – mas sobre o filme pouco se comentou. Todas as atenções ficaram sobre as declarações nazistas do realizador, que terminou sendo expulso do festival – ele, não o longa – e não pode comparecer à cerimônia de encerramento. Uma pena. Tudo isso foi uma distração que o filme não merecia.

Melancolia reflete bem o título. É um trabalho melancólico. É sobre o fim do mundo. Duas irmãs estão juntas no momento do apocalipse. Uma desistiu do marido no dia do casamento. A outra tenta se agarrar com todas as suas forças à vida, mas a vê escapando pelos dedos. No final, não há como se debater. O fim vem à todos. Ao menos aqui a fotografia é linda, a trilha sonora – quando há – é belíssima e as atuações são de primeira linha. Há em cena alguns resquícios do movimento que von Trier ajudou a fundar – e foi um dos primeiros a abandonar – no final do século passado, o tal Dogma 95. Mas isso parece ter se incorporado ao modo dele filmar. É cruel, seco, direto. E também dolorido, sofrido, amargo. Difícil de engolir. Assim como as situações por ele propostas.

As tramas de von Trier são, em geral, bastante banais e óbvias. Uma mulher é maltratada por ser boa e ingênua demais. Uma outra é explorada pelo melhor amigo ao tentar salvar o filho da cegueira. Um casal sofre e se culpa pelo acidente que levou o filho único à morte enquanto transavam no quarto ao lado. Há também a que vira objeto sexual do marido inválido. Por trás de tudo isso, sempre temos críticas ao consumismo, à visão ocidental e capitalista do mundo, à política americana, à utopia de que as pessoas podem ser verdadeiramente boas e desprovidas de segundas intenções. Ninguém é santo, afirma. E se esforça para comprovar suas teses, manipulando emoções e discursos. O pior é que faz isso com tanta habilidade que chega a ser complicado escapar de suas armadilhas.

À frente estão sempre trágicas heroínas de se sacrificam por seus homens, por suas famílias, por suas índoles. Em Melancolia não é diferente, mas ao invés de uma personagem solitária, temos duas irmãs diante do fim do mundo. Na primeira metade do filme, vemos a festa de casamento da caçula que decide abandonar o marido logo após à cerimônia. O que a teria levado a essa decisão? Seus problemas são interiores ou estariam sendo afetados por algo externo? São ocasionais ou perenes? Na segunda metade, vemos a irmã mais velha enfrentado o desfacelamento de suas crenças face a um acontecimento inimaginável – um astro está em rota de colisão com a Terra e irá acabar com tudo e todos. Não há para onde fugir, escapar, se esconder. Será o fim. E ponto. E quando enfrentamos algo inevitável, adianta se debater, reclamar, chorar, protestar? O desespero tem sentido?

Este é o terceiro trabalho de von Trier que rende o prêmio de Melhor Atriz em Cannes a sua protagonista, após Dançando no Escuro, com Bjork, e Anticristo, com Charlotte Gainsbourg. Essa última volta, agora, como a irmã mais velha de Dunst, que após viver a mocinha Mary Jane de Homem-Aranha e a rainha adolescente Maria Antonieta, parece ter atingido uma maturidade que nos remete a um dos seus melhores momentos, o dramático e tocante As Virgens Suicidas. As duas estão igualmente ótimas e merecem aplausos. Difícil apontar a melhor. Assim como o time de coadjuvantes: John Hurt é genial, assim como Charlotte Rampling (megera) e Stellan Skarsgard (desprezível). Até os televisivos Kiefer Sutherland (24 Horas) e Alexander Skarsgard (True Blood) se saem muito bem, revelando novas facetas.

Mas Melancolia é mais do que boas atuações, uma fotografia perfeita – os cinco minutos iniciais são primorosos – e um texto perverso e provocador. É também um exercício de reflexão e desapego. À vida, ao universo e à tudo que nos rodeia. O que von Trier parece querer dizer é: lide com o que lhe assombra internamente que tudo mais dará certo. Muito pior do que o fim do mundo são os nossos próprios fantasmas. Se em ambos os casos não há para onde fugir, ao menos quando o assunto é conosco sabemos de antemão que a responsabilidade é somente nossa. E, talvez por isso mesmo, o desafio seja muito maior.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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