Crítica

Toda guerra tem uma alcunha, seja Vietnã, Coréia ou Napoleônica. Mesmo as que se pretendem gerais, como a Segunda, são a batalha dos seus protagonistas: o eixo contra os aliados. As guerras nos lembram onde aconteceram, quais os partícipes e, com isso, não nos enganam – nós nos enganamos. Se os interesses são particulares; as mortes são universais.

Um espaço imaginário é o ambiente pelo qual se passa Medo e Desejo, longa de estreia de Stanley Kubrick. A geografia é desnecessária para situar-nos diante do grupo de soldados que conheceremos. Após a queda de seu avião em território inimigo, quatro militares evitam ser descobertos enquanto aguardam o resgate.

Com orçamento estimado em 33 mil dólares, Kubrick assumiu o filme por inteiro. Exceto o roteiro de Howard Sackler (também parceiro em A Morte Passou Perto, de 1955), assinou direção, produção, montagem e fotografia. Mas a concentração de esforços não garantiu profissionalismo. Para um perfeccionista como Kubrick, esta pode ter sido a primeira lição do cinema. Apesar de empenhar-se no caminho contrário, a marca mais saliente é a do amadorismo. A composição das cenas deixa a desejar – o que não impede momentos de boa construção e beleza. O roteiro limita-se a um argumento. A montagem não faz milagres e nem tem a fluidez necessária para dar ritmo ao filme.

De certa maneira, pode-se compreender o desejo de Kubrick ao censurar a obra. Para um diretor visual, comprometido com um primoroso vigor estético, o início pareceria o contraponto irônico da trajetória. Como pecado que necessita ser expurgado, a penitência de Kubrick foi a negação.

A grossa camada artesanal não impede, porém, que o filme diga a que veio. O diretor que reconheceremos por 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971) está aqui presente ao dar a um filme de guerra mais do que ação, e transformá-lo em um inventário psicológico.

Liderados pelo tenente Corby (Kenneth Harp), o grupo de soldados se depara incessante e alternadamente com o medo e a coragem. O sangue rompe promessas e com elas muita coisa se perde. A cena da jovem prisioneira aos cuidados do soldado Sidney (Paul Mazursky), por exemplo, é a mostra de como a civilidade é um luxo que se esvazia com facilidade. De personalidades distintas, Corby e Mac  (Frank Silvera) refletem a guerra desde dentro. Alguns são tomados pela precaução e autopreservação, outros pelo senso de responsabilidade e pela coragem.

Medo e Desejo é um embate psicológico do início ao fim, quando Mac e Sidney compartilham a mesma barca. As cenas de morte são poucas, o que evidencia o foco pretendido pelo diretor. Nos poucos momentos em que se apresenta, a morte tem o impacto dos cortes secos da montagem. Parada nos rostos inertes, a imagem é uma pergunta existencial – silenciosa. Em um misto de ação com reflexão, a última vence. O estandarte da proposta humanista do filme está em Mac, aquele que faz a escolha de poucos. Ao contrário do que parece afirmar o poeta John Donne, não somos um continente. Somos o resultado de poucos. Somos ilhas.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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