Crítica

Um homem (Vincent Gallo), aparentemente membro do Talibã, é capturado em uma nação do Oriente Médio após matar três soldados norte-americanos em missão confidencial. Levado a uma base militar, onde é torturado, ele mantém o silêncio, sendo transferido para outra localidade. Durante o trajeto, o comboio que o transporta sofre um acidente, caindo de uma colina em meio a uma vasta paisagem nevada, supostamente no leste europeu. Libertado, o prisioneiro embarca numa ininterrupta jornada de fuga que o obrigará a superar inúmeras provações. Apesar dos elementos presentes na premissa, e de ter sido lançado após uma leva de produções sobre o combate ao terrorismo, como Guerra ao Terror (2008), de Kathryn Bigelow, em Matança Necessária o cineasta Jerzy Skolimowski opta por não adotar um discurso de denúncia ou se aprofundar no teor político da trama.

O polonês não impede que tais discussões sejam suscitadas, nem fecha sua obra às interpretações do espectador, contudo, seu interesse aqui é claramente outro. Um interesse, como já denota o título original, na característica “essencial” da natureza humana: o instinto de sobrevivência. Tendo esse como o cerne de sua investigação, Skolimowski apresenta uma abordagem desinteressada da contextualização, que fornece apenas o básico para a construção de uma narrativa totalmente física. Assim, não é primordial que se saiba o nome do personagem de Gallo – que nos créditos surge como Mohammed – nem os motivos que o levaram a ser perseguido inicialmente – se é terrorista ou não - ou mesmo a localização geográfica exata da ação – é possível deduzir que a trama se inicie no Afeganistão passando à Polônia.

A proposta de Skolimowski, de abstrair informações, se mostra um reflexo da situação radical enfrentada pelo protagonista. Afinal, quando se luta desesperadamente, e contra todas as adversidades, pela própria vida, qualquer outra questão – política, social, afetiva – é colocada em segundo plano. Essa imposição da abstração é elevada ao máximo por Skolimowski, abarcando, inclusive, a própria identidade de Mohammed. Obrigado a se adaptar a cada desafio que lhe é impelido, o fugitivo passa por inúmeras transformações, assumindo os papéis necessários à sua sobrevivência, e se distanciando gradativamente do homem do início – primeiro perdendo suas vestes tradicionais, seu turbante e tendo seu cabelo cortado, depois sendo vestido de prisioneiro, de militar, com camuflagem branca e, por fim, com as roupas de um homem comum.

Tal metamorfose evoca o sentido da regressão ao aspecto humano mais primitivo. Algo simbolizado na sede pelo leite materno, explicitada em uma sequência marcante – quando Gallo cruza o caminho de uma mãe e seu bebê – que, mesmo com sua carga insólita, soa completamente genuína e íntima. Nessa transmutação regressiva, a noção de comunicabilidade também é afetada, motivo pelo qual Gallo não profere uma única linha de diálogo durante toda a projeção. Sua capacidade de comunicação se torna intrinsecamente ligada a uma compreensão instintiva, que lhe permite identificar se as outras pessoas oferecem perigo ou são amigáveis, podendo até demonstrar afeto. Essa última qualidade é encontrada pelo protagonista justamente numa semelhante, que compartilha de sua incomunicabilidade, a mulher surda-muda (vivida por Emmanuelle Seigner).

É ela quem o abriga, cuida de suas feridas e o protege dos militares à sua procura, sem qualquer motivo particular, apenas pelo mais puro sentimento de compaixão. Com isso, Skolimowski aponta para a crença de que essa pureza, essa bondade irrestrita e natural, seja também um elemento primordial da concepção humana, dividindo espaço com a violência animalesca. Contudo, por mais que trate desses atributos particulares da humanidade, Skolimowski sublima o papel do meio, da natureza, como agente modificador da visão e da trajetória do homem. Pois são de ordem natural os acontecimentos que guiam os passos de Mohammed – os javalis causam o acidente do comboio, os cães o perseguem, o gelo se quebra fazendo-o cair nas águas gélidas, as frutas lhe causam alucinações. Em meio a esse poder natural, o homem assume sua insignificância, e Skolimowski a exalta, registrando de modo primoroso a imensidão da floresta nevada ou dos rochedos labirínticos do deserto que engolem a figura de Gallo.

Além da beleza estonteante das imagens, as escolhas precisas do cineasta – a câmera na mão para exprimir a urgência de uma escalada, os planos aéreos que conferem um ar contemplativo – servem, essencialmente, à fisicalidade exalada por seu registro, trazendo à memória o Joseph Losey de No Limiar da Liberdade (1970). Uma característica que é complementada pela visceral atuação de Gallo, externando o pavor, a angústia e as fraquezas deste sobrevivente obrigado a confrontar sucessivamente a morte. Através dos olhares, das lágrimas e do esforço físico, o ator valoriza essa luta e dá sentido também à comunhão entre homem e natureza – comendo as cascas das árvores, o peixe cru, os cupins do enorme cupinzeiro - pois, como Skolimowski constata, as piores ameaças são criadas pelo próprio homem, com suas armas, motosserras e armadilhas para ursos.

É dessa fusão com o meio, da entrega ao seu lado animal, que surge o instinto assassino de Mohammed. Contrariando os breves, porém fundamentais, flashbacks – que, além de uma esposa e filho, revelam as palavras de ordem do Talibã que o definem como um instrumento do desejo de Alá – o personagem não mata pela fé ou pelo anseio de se tornar mártir, mas exclusivamente pela necessidade de sobreviver. Uma atitude que Skolimowski não endossa, ou julga, mas que acredita levar a um único desfecho possível, que por mais irremediável e até premeditado – em vislumbres do futuro inseridos pelo cineasta – não se torna menos devastador em seu impacto, nem perde o lirismo da compreensão de que, mesmo lutando, o homem é incapaz de fugir de seu destino original.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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