Crítica

Contemporâneo de Andrzej Wajda e Roman Polanski, tendo sido roteirista em trabalhos de ambos – Os Inocentes Charmosos (1960), do primeiro, e A Faca na Água (1962), do segundo – Jerzy Skolimowski pertence a uma geração que, assim como tantas outras “novas cinematografias” surgidas pelo mundo nas décadas de 1950/60, buscava algum tipo de revolução na linguagem cinematográfica. Defendendo essa proposta, surgia a Nouvelle Vague Polonesa, denominação derivada do mais notório dos movimentos da época, a Nouvelle Vague Francesa. Em Marcas de Identificação: Nenhuma, seu primeiro longa como diretor, bem como nos trabalhos posteriores da primeira fase de sua carreira, realizados ainda na Polônia, Skolimowski, de fato, demonstra partilhar de muitas das percepções dos “jovens turcos”, em especial das de Jean-Luc Godard.

A predisposição a experimentações e o desejo ávido pela ruptura com os códigos narrativos clássicos são latentes nesta película em que o próprio Skolimowski assume o papel protagonista, o estudante de ictiologia – ramo da zoologia que estuda os peixes – Andrzej Leszczyc, espécie de alter ego que voltaria a interpretar no longa seguinte, Walkower (1965), continuação direta desta estreia. Incapaz de concluir sua tese de graduação, sem conseguir um emprego fixo e vivendo num modesto apartamento custeado pela namorada/esposa, Theresa (Elzbieta Czyzewska), Andrzej, retrato de uma juventude sem rumo, acaba sendo convocado pelo serviço militar. A trama, então, acompanha as poucas horas restantes no dia do jovem antes que se apresente ao exército e tome o trem em direção ao interior do país.

Desde os primeiros minutos de projeção, nota-se uma destreza técnica em sintonia com as ambições de Skolimowski. Variando entre elaborados planos sem cortes, transições bruscas, de montagem acelerada, e composições invulgares, o cineasta cria um longa plasticamente notável e ousado – vide planos como aquele que enquadra Andrzej observando Theresa e o reflexo dessa se maquiando no espelho, o do protagonista e dois amigos num café refletidos no balcão, ou ainda a sequência do alistamento, com o teste de visão, filmado em câmera subjetiva. O ritmo inicial é frenético, como na cena dos jovens cantando e dançando na sala de espera do quartel enquanto soldados marcham do lado de fora, e pouco desacelera com o desenrolar do enredo, denotando a urgência do registro, espelho da ânsia de Andrzej por encontrar um caminho, uma identidade.

Tal sentimento, compartilhado pelo diretor, se mostra comum na paisagem da Polônia do pós-guerra por ele retratada. A memória desses eventos ainda recentes se faz presente no cotidiano do protagonista, como o enorme ferro velho que se agiganta sobre ele no caminho para casa, na figura do veterano que rememora seus dias de combate ou nas sombras colossais, quase expressionistas, que parecem seguir Andrzej, projetadas pelas pessoas que se aquecem em barris de fogo ao raiar do dia, enquanto outros homens e mulheres cambaleiam pelas ruas saindo das boates, num dos mais belos planos-sequência do longa. A narrativa de Skolimowski é composta pelos encontros e desencontros de seu personagem, com figuras que surgem basicamente sem se apresentar, como se todos, de alguma forma, já se conhecessem, ou estivessem conectados pelo citado sentimento de desorientação.

Skolimowski mantém essa sensação de familiaridade ao utilizar Czyzewska para interpretar as três mulheres que se relacionam com Andrzej e representam diferentes possibilidades para seu futuro. A esposa, que trabalha decorando vitrines – manequins estáticos – simboliza, portanto, a estabilidade – ao menos financeira, já que o protagonista desconfia que ela tenha um caso. Barbara, a estudante que conhece na universidade, é com quem divide sua inquietação, sua vontade de mudança, chegando a combinar um encontro na estação de trem. E, por fim, a mulher casada, que representa o perigo, o proibido. É um jogo de aparências – incluindo a semelhança física dessas mulheres – proposto por Skolimowski, carregado de dubiedade, assim como o jogo de palavras. Andrzej evoca a questão da incomunicabilidade, sempre inventando, mudando fatos, tornando difícil distinguir a realidade no que diz, sendo o seu desejo de transformação a única verdade inconteste.

Envolvido por uma atmosfera de tragédia eminente – o cachorro que morre de raiva, o homem com o pequeno caixão na escada, a mulher atropelada fora de quadro – e atormentado pela angústia, Andrzej externa seus anseios ao repórter que pergunta se gostaria de ser um cosmonauta. Na resposta, coberta de lirismo, ele afirma que sim, revelando que se contentaria com menos do que a galáxia para ser um motorista de caminhão e desbravar seu próprio país. Com essas palavras, Skolimowski sintetiza a vontade de fugir do caos de uma cidade que nunca para – o carro que manobra ininterruptamente ao fundo na cena em que Andrzej fala com a mãe ao telefone, a criança pulando corda no pátio com a qual tromba na corrida para a estação. Tal fuga da desilusão é encontrada no serviço militar, rejeitado por ele anteriormente. Ao dizer que gostaria de entrar para o exército, o comandante sugere que essa talvez seja uma “nova tática” para enganá-lo e evitar a obrigação. Contudo, ao embarcar no trem, sem olhar para trás e se desencontrando de Barbara, rumo a um futuro incerto, um possível inferno – não à toa os soldados entoam uma canção sobre Eurídice e Orfeu – Andrzej, conclui Skolimowski neste estopim empolgante de sua obra, parece estar enganando apenas a si próprio, buscando reconforto em mais uma mentira.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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