Crítica

Quem foi Robert Mapplethorpe? Homem ou mulher? Heterossexual ou gay? Profissional ou provocador? Criador ou reprodutor? Filho ou celebridade? Ou, talvez, apenas um dos maiores fotógrafos de todo o século XX? Quando morreu, aos 42 anos de idade, em 9 de março de 1989, vítima da AIDS, já desfrutava de um prestígio quase inimaginável para um mero tirador de fotografias (como durante muito tempo se autodenominou). Ao mesmo tempo, respondia por algumas das maiores polêmicas daquela época, com exposições canceladas, protestos com a presença de multidões e foco de discursos inflamados no Congresso. Boicotado por alguns, endeusado por outros tantos. Compreender todas as facetas de uma personalidade tão múltipla quanto singular é a tarefa que acompanharmos ser desempenhada com extrema competência em Mapplethorpe: Look at the Pictures, mais uma surpreendente realização do canal HBO.

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Concebido inicialmente para ser exibido pela televisão, o longa dirigido por Fenton Bailey e Randy Barbato (criadores do fenômeno RuPaul’s Drag Race, 2009-2016) recebeu duas indicações ao Emmy – o Oscar da televisão norte-americana – tendo concorrido como Melhor Documentário e Melhor Fotografia – tendo perdido, na primeira, para What Happened Miss Simone? (2015), e na segunda, para Cartel Land (2015), coincidentemente, duas produções do gênero indicadas também ao Oscar de fato (ambas foram derrotadas por Amy, 2015). Uma visão mais ampla como essa é importante para se ter uma melhor noção a que tipo de obra Mapplethorpe: Look at the Pictures se situa ao lado. Ainda mais apresentando um resultado mais corajoso, despudorado, livre de amarras e profundo sobre a alma da personalidade em questão do que seus similares aqui citados. Afinal, como o próprio biografado chega a afirmar, tudo que se precisa saber sobre ele está lá, nas suas imagens.

E que fotos são essas? Para quem não o conhece, Look at the Pictures já começa com um alerta: a figura no centro da discussão é, no mínimo, controversa. E isso porque as primeiras palavras que ouvimos, logo no início da narrativa, é a de um discurso proferido por um senador em tribuna que, após localizar a quem ele está se referindo (Mapplethorpe, quem mais?), pergunta: seria o resultado deste trabalho algo apto a ser considerado arte? No caso do declarante, não há dúvidas: tem-se aqui a mais pura e vazia pornografia. Sim, pois pode ser notória a série com flores que Mapplethorpe realizou, mas foram as composições repletas de nudez, desprovidas de vergonha e nenhum tipo de pudor que fizeram sua fama. Para o bem e para o mal.

Bailey e Barbato não estão atrás de um viés meramente expositivo, no entanto. Suas fotos estão em cena: homens (a maioria) e mulheres nus, pênis eretos, vislumbres físicos. E ele não parava por aí. Cenas de fisting (quando se envia um dedo, a mão ou até mesmo o punho inteiro no anus de uma outra pessoa ou de si próprio), piercing, fetiches das mais variadas ordens e outras ousadias que tanto chocam quanto intrigam. O cenário ganha força com a representação pictográfica do que se discute, mas não se acaba nestas ilustrações. Vai-se além, indo atrás das pessoas que conviveram com o artista, que desfrutaram de sua vida e de sua visão de mundo, que atuaram ao seu lado no mundo das artes e que assim como ele enfrentaram o surgimento da AIDS – com mais sorte, no entanto, pois seguem vivos para contar. Namorados, irmãos, colegas, admiradores, jornalistas, críticos, entusiastas, especialistas. O quadro só não é completo por uma notável ausência: Patti Smith, sua primeira – e talvez única – namorada, que é vista em registros da época e em obras de Mapplethorpe (como a capa do álbum Horses, de 1975). Seu silêncio só não é mais sentido por saber-se do comportamento recluso da cantora. O que ela teria a dizer, no entanto, permanece no campo das hipóteses.

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A criança feliz criada em uma família rigidamente católica ao jovem que aos poucos começou a demonstrar sinais de rebeldia. O adolescente que na primeira oportunidade saiu de casa, ao mesmo tempo em que recusava a fotografia, uma atividade mais praticada pelo pai, de quem manifestava querer distância. Da descoberta do amor livre às primeiras expressões enquanto artista. A obstinada busca pela fama, a troca constante de parceiros sexuais e como cada um destes ao seu lado poderia refletir em sua escalada social. As provocações, as controvérsias, a consagração. A fama e a descoberta da doença que lhe tiraria a vida. O auge e a queda. Tudo isso está em Mapplethorpe: Look at the Pictures, porém não de modo didático, professoral. Pelo contrário, é como se cada imagem resgatada fosse uma peça de um quebra-cabeças. A tarefa aqui, portanto, foi uni-las, para formar um conjunto maior, mais amplo, abrangente e completo de um homem que foi tudo isso e muito mais. E que até hoje repercute, tanto no que produziu em vida como em obras como essa, à altura do talento retratado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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