Crítica

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Durante muitos anos, filmes realizados no Rio Grande do Sul ganharam espaço competitivo cativo no Festival de Gramado, sendo que, na maioria das vezes, essa posição era garantida mais pela questão geográfica que por méritos próprios. Pois com Malícia, longa produzido no Distrito Federal e selecionado para o 49° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, descobrimos que tais artimanhas não são exclusividade do evento gaúcho – também no planalto central se faz o mesmo. Elemento estranho dentre os títulos escolhidos em 2016, tanto por não se comunicar em tema ou estilo com algum dos seus concorrentes como também por não possuir qualidade suficiente para fazer frente aos seus oponentes, o trabalho do diretor Jimi Figueiredo revela-se amador em mais de um aspecto. Tem-se aqui uma narrativa carente de um olhar apurado sobre o que anseia dizer e deficiente até mesmo nos aspectos técnicos, denotando uma condescendência absurda dos curadores, única justificativa para sua inclusão em tão esmerada mostra.

Durante a apresentação da obra no palco do Cine Brasília, uma das atrizes afirmou a importância deste “alerta sobre os perigos da internet”. Esse aviso, no entanto, é só mais um dos tantos equívocos relacionados à obra. A história organiza-se a partir de uma estrutura dupla, cujas partes aos poucos vão se revelando interconectadas, porém sem que haja habilidade suficiente para tais ligações. Clara (Vivianne Pasmanter, a única atriz de fato em cena, porém em papel ingrato) e Luciano (João Baldasserini, incapaz de oferecer nuances a uma figura que necessita delas) estão com um problema: o restaurante dele está afundado em dívidas, o que a obriga a vender o próprio carro para ajudá-lo. Ela é mãe de Luana (Laura Figueiredo, cujo sobrenome já entrega sua origem paterna), adolescente que ainda que tente passar uma imagem de alienação – como bem cai a todo jovem dessa idade – está atenta ao que se passa ao seu redor (de um modo professoral e impertinente que dificilmente despertará simpatia no espectador). A menina está entre os dois, assim como com as amigas e outras relações que só serão reveladas posteriormente. Um esforço do realizador para criar um suspense que se mostra, no entanto, infundado.

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Do outro lado temos Camila (Marisol Ribeiro, que torna evidente o seu esforço de encenação, revelando uma inabilidade gritante em desaparecer por trás da garota que deveria defender), rebelde e insatisfeita. Busca o pai (Murilo Grossi, em participação rápida e discreta logo no início) atrás de ajuda, revirando superficialmente um trauma cujo único propósito é construir psicologicamente sua personagem. É uma tentativa de explicar os motivos de sua atração por Raul (Sergio Sartorio, transparente demais para um tipo que exigia mais mistério), homem que a maltrata, ao mesmo tempo em que a persegue. Qual precisa mais do outro? Ela, explosiva e forçosamente intensa, ou ele, calado e cheio de segundas intenções? Jimi Figueiredo cria um painel artificialmente engenhoso, frágil a ponto de desabar no primeiro confronto. As conexões entre cada um desses infelizes são óbvias, consequência de diálogos expositivos e de ações reiterativas que servem mais para martelar no espectador uma lógica inadequada do que para colaborar com o desenvolvimento do enredo.

O que se percebe em Malícia é uma vontade de complicar, justamente quando o necessário seria apenas simplificação e objetividade. Clara e Luciano precisam pagar o que devem, Camila quer fugir de qualquer responsabilidade, enquanto Raul acredita ter todos em suas mãos. A despeito desse cenário, a única capaz de enxergar cada um desses laços é Luana, justamente aquela desinteressada por tais processos. Qual o sentido, portanto, de dotá-la desse poder? Cada revelação produz pouco de concreto, uma vez que não são elas os centros do que aqui se desenrola. Além disso, há uma ineficiência geral na produção, que vai desde os cenários redundantes e pouco criativos até as encenações primárias, indicando a ausência de um exercício entre os atores. Todos tentam fazer o que lhes compete, porém agindo em tons diferentes. Não há química entre eles, com o que está sendo contado e nem com o ambiente em que transitam. Como se pode imaginar, o desastre é completo, do início ao fim.

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Jimi Figueiredo estreou no formato de longa-metragem com Cru (2013), filme recebido com entusiasmo em círculos mais restritos. Seu trabalho seguinte, Jogo de Memória (2014), já apontava, no entanto, para uma ambição desprovida de uma base sólida onde pudesse se desenvolver. O mesmo, infelizmente, se dá com Malícia. Independentemente dos nomes globais que atraiam ou dos supostos talentos locais envolvidos, o fundamental é ter bem claro o que dizer e, principalmente, saber como atingir tal objetivo. Justamente o que aqui parece fazer falta. Acadêmico no pior sentido da expressão e ultrapassado em qualquer tentativa de modernidade (a internet, por exemplo, mal se posiciona como pano de fundo, nunca alcançando o nível de discussão almejado), tem-se aqui um exercício de nulidade, perfeito apenas em colocar em evidência o nada que o muito reunido pode resultar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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