Crítica

O pior pecado que um filme baseado em uma história real pode cometer, talvez até mais grave do que se acomodar na pretensa nobreza temática, é o de não acreditar verdadeiramente no poder dos fatos que se propõe a narrar. Tal hesitação pode ser notada em Lion: Uma Jornada Para Casa, longa de estreia do australiano Garth Davis, que traz a história de Saroo (Sunny Pawar), um garoto indiano de apenas 5 anos que, após se perder de seu irmão em uma estação de trem, acaba dentro de um vagão que o leva até Calcutá, a mais de 2.400 quilômetros de seu pequeno povoado natal. Sozinho e com extrema dificuldade para se comunicar, pois fala um dialeto diferente, Saroo luta para sobreviver nas ruas até o dia em que é adotado por um casal australiano.

Das imagens paisagísticas, embaladas pela trilha sonora emotiva carregada, que abrem a projeção e levam ao plano de Saroo correndo entre borboletas, fica evidente que Davis não é afeito a sutilezas, e que estamos diante de um filme que busca impor a comoção ao invés de proporcionar uma atmosfera favorável para que os eventos retratados irradiem sua força naturalmente. Toda a primeira parte, mostrando a situação desesperadora do pequeno protagonista, apela para a desgastada estética da miséria, que termina por reduzir o panorama sociocultural de um país aos estereótipos problemáticos do Terceiro Mundo. O universo apresentado por Davis se vale da crueldade de modo maniqueísta, transformando praticamente todos os que cruzam o caminho de Saroo na Índia em ameaças/obstáculos para sua jornada edificante de superação.

A única centelha de espontaneidade dentro desta proposta de Davis vem do novato Sunny Pawar. Com seu físico franzino e olhar doce, o garoto consegue transmitir de maneira genuína toda a fragilidade, angústia, medo e solidão do personagem em meio a tantas adversidades. Consciente das qualidades do ator-mirim, o cineasta ao menos abre algumas brechas silenciosas, sem grandes interferências – como quando interage pela primeira vez com as outras crianças de rua – para que ele encante. Contudo, mesmo que estes momentos de pureza existam, Davis não resiste em explorar a figura de Pawar como isca principal de seu constante jogo de chantagens emocionais com o público, que substitui a aproximação e o aprofundamento do drama pelo simples sentimento de pena.

A segunda parte da trama avança 25 anos para acompanhar o cotidiano de Saroo (agora vivido por Dev Patel) ao lado dos pais adotivos (Nicole Kidman e David Wenham) na Tasmânia. Nessa passagem, vemos o personagem como alguém plenamente adaptado à sua realidade atual, dando a nítida impressão de pouco se lembrar dos primeiros anos de infância e da família que deixou para trás. Uma representação que torna ainda mais artificial sua repentina obsessão – cujo gatilho é disparado por uma memória afetiva relacionada à comida indiana – por descobrir a localização de seu povoado e reencontrar a mãe e irmãos biológicos, utilizando para isso o advento, ainda recente à época, do Google Earth. Devido ao grande tempo despendido na metade inicial, a porção derradeira surge apressada, com pouco espaço para o desenvolvimento de situações e personagens, culminando num acúmulo esquemático de episódios.

O peso das passagens temporais nunca é sentido, e o fato de o desfecho ser previsível, mesmo para os não familiarizados com a história real, faz com que a narrativa pareça andar em círculos para preencher os espaços até sua chegada. Nesse trajeto, as relações são construídas de maneira superficial e formulaica, prejudicando até mesmo o visível comprometimento do elenco, em particular de Patel e Kidman, que imprimem dignidade a seus papéis. Outros bons nomes, por sua vez, são relegados a participações funcionais pouco destacadas, como Rooney Mara, que interpreta a namorada do protagonista. Não bastasse a fragilidade dessa concepção, Davis ainda recorre a um espiritualismo – através da imagem do irmão que assombra Saroo, num prenúncio do que virá – que, por mais que seja um aspecto notório da cultura indiana, soa apelativo. O que leva ao ápice das escolhas questionáveis do longa: o lugar-comum da solução deus ex machina para a busca do personagem principal.

Davis registra tudo sem muitos maneirismos, mas também sem uma identidade própria perceptível, se aproveitando da bela fotografia de Greig Fraser, repleta de tomadas aéreas que remetem às imagens do Google Earth, não deixando esquecer sua importância na história. A principal falha do trabalho de Davis, porém, é mesmo a falta de crença no efeito da simplicidade. Algo que fica claro na necessidade de transformar o intimismo em momentos de catarse coletiva que visam às lágrimas, e que se estende ao reforço contínuo do caráter bem intencionado do projeto – nas imagens reais pós-créditos, na mensagem da ONG etc. Aparentes boas intenções cinematográficas que carregam não só uma possível leitura simbólica do Primeiro Mundo como salvador dos oprimidos – sem querer entrar nos méritos do altruísmo dos pais adotivos – como também a vontade de capitalizar sobre o drama, com direito a oportunidade de merchandising. O que faz com que o passado no mundo publicitário do diretor até venha a calhar.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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