Crítica

O despertar da condição sexual entre jovens é um tema bastante recorrente no universo cinematográfico. E se na maioria das vezes vemos esse assunto sendo explorado por comédias descerebradas, em outras tantas ele é abordado de modo mais profundo e delicado. Ainda mais quando os personagens em questão são do mesmo sexo. No cinema dito homossexual – se é que essa expressão é possível – essa descoberta vem acompanhada, geralmente, de grandes dramas internos e conflitos com familiares e amigos. O húngaro Viharsarok (ou Land of Storms, título internacional que poderia ser traduzido como Terra de Tempestades) conduz sua narrativa por esse mesmo terreno, porém evitando os clichês mais óbvios do gênero e atingindo, desse modo, um discurso tão contundente quanto perturbador.

Ádám Császi, diretor e roteirista estreante no formato longa-metragem, entende que a força do seu filme está mais nas imagens e nos acontecimentos que envolvem seus personagens do que nas palavras e nos diálogos que, volta e meia, eles proferem. Por isso há muitos silêncios em cena, sequências inteiras apenas com um único tipo em cena, com muito se passando internamente e pouco no exterior. É um tipo de cinema ousado, que exige do espectador uma atenção redobrada. Não que esta tarefa seja cansativa, pelo contrário. Uma vez em sintonia com a narrativa, segui-la se torna tão natural quanto os episódios presenciados na tela. A conexão entre um e outro, após o estranhamento inicial, se dá de forma quase que automática.

O protagonista de Viharsarok é Szabolcs (András Sütö, rapaz de traços marcantes e olhar profundo), um jovem decidido a seguir carreira como jogador de futebol na Alemanha. No entanto, quando seu time é eliminado do campeonato, ele entra em rota de colisão com o treinador e com os colegas, a ponto de tomar a decisão de voltar para sua cidade natal, no interior da Hungria. Uma vez lá, segue direto para a casa de campo do avô, abandonada após a morte deste, para restaurá-la sozinho. É um trabalho braçal, que lhe ocupará o corpo e a mente, impedindo-o de pensar nos problemas que deixou para trás. Numa noite, sozinho no meio do nada, acaba conhecendo Áron (Ádám Varga), um jovem local que, ao ser pego tentando roubar sua moto, acaba se arrependendo e, para recompensar seu novo amigo, decide ajudá-lo na reforma.

Acontece que Sza abandonou não apenas a família – o pai com quem tem uma relação conturbada – e o esporte, mas também o melhor amigo, Bernard (Sebastian Urzendowsky, de Adeus, Primeiro Amor, 2011). Num momento de profunda solidão, ele retoma o contato por telefone, num pedido confuso de ajuda e desculpas. Porém, quando Sza e Áron começam a ficar íntimos – algo que surge de modo inesperado para ambos, porém compreensível – Bernard aparece pronto para confessar seu amor pelo amigo. Um triângulo amoroso se forma, porém não da forma mais tranquila. Sza se sente em débito com Áron, que está enfrentando a mãe e os amigos da pequena vila para ficar ao seu lado – e, principalmente, lutando consigo próprio, pois a aceitação de sua homossexualidade não lhe é tão óbvia quanto é para o protagonista. Mas Bernard lhe é familiar, a relação entre os dois tem um significado, e uma decisão entre eles não será tomada da maneira mais fácil.

É interessante ir percebendo no decorrer do filme como Császi vai espalhando sem pressa os elementos que considera relevantes, apenas para retomá-los depois com maior propriedade. Na primeira meia-hora da trama, centrada na Alemanha e na prática esportiva que envolve os rapazes, vemos a todo instante interações que podem ou não ter conotações sexuais, dependendo apenas do modo que as encaramos. Por isso, quando um dos personagens decide se assumir homossexual, isso não se dá de modo abrupto ou apressado – é apenas uma consequência da tomada de consciência a partir de sua postura inicial. O mesmo vemos na relação de Áron com os que o circulam, como a namorada, a mãe doente e os amigos de vagabundagem, seres movidos por instintos mais básicos e que não sabem como reagir diante de qualquer comportamento que lhes fuja à compreensão – a violência, portanto, faz parte desse universo, e esperar por ela é apenas questão de tempo.

Apontado por alguns como “O Segredo de Brokeback Mountain húngaro”, Viharsarok carrega em relação ao oscarizado drama dirigido por Ang Lee mais semelhanças do que talvez fosse necessário – sem, no entanto, perder sua própria personalidade. Isso se deve não apenas ao argumento ou ao modo de conduzir os personagens, mas principalmente ao ambiente criado entre eles, refletindo na dureza de suas condições os espinhos que carregam dentro de si, e também no destino que lhes espera, fazendo da tragédia motivo de debate e reflexão. É um filme triste, que se anuncia doloroso desde a jornada do protagonista até as ligações que unem e afastam cada um dos envolvidos, mas também pelas questões que levanta e aponta seu olhar, mirando o incômodo com ousadia e determinação. É duro, mas também necessário. E estas são qualidades que não podem ser ignoradas.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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