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Sinopse

A vida e a obra do músico Kurt Cobain, vocalista e guitarrista da banda Nirvana, um dos grandes nomes do movimento grunge. O vemos da ascensão aos problemas com a depressão e as drogas.

Crítica

Montagem dos Infernos poderia ser uma das traduções do título do filme de Brett Morgen sobre a vida de Kurt Cobain, lançado 21 anos após seu suicídio nos Estados Unidos. Montage of Heck refere-se a uma mixtape feita pelo músico em 1988, quando ainda era desconhecido, e faz parte de 108 cassetes com estudos de guitarra, trechos de canções, conversas ao telefone e colagens sonoras realizadas pelo roqueiro as quais o diretor teve acesso. Em seu documentário, Morgen articula estes áudios com filmes familiares em super-8, home videos, diários, músicas, textos, desenhos e diversos fragmentos do intenso período criativo do eterno líder do Nirvana.

Imortal? Sim, Kurt guarda em si uma eternidade provavelmente indesejada. Antes mesmo de sua morte, já figurava no panteão do rock’n’roll ao lado de alguns dos músicos mais importantes de todos os tempos. À frente de sua banda, liderou uma vertente roqueira que resgatou a inquietude, a desilusão e a revolta punk não apenas em termos estéticos corrosivos, mas acima de tudo em função de uma atitude crítica e niilista frente à sociedade, à mídia e à indústria fonográfica. De uma forma ou de outra, as três instituições o transformaram em algo que ele não gostaria de ser: ídolo, voz de uma geração, modelo a ser seguido.

Contrariado, seu percurso de autodestruição não tardou. E se para se tornar imortal muitas vezes paga-se o preço do fim trágico, é significativo o fato de Montage of Heck ter início com a morte simbólica de Kurt durante um show do Nirvana. Em seu prólogo audiovisual, o filme intercala depoimentos da mãe, Wendy, da irmã, Kim, e do baixista Krist Novoselic, todos ressaltando a genialidade do músico, com cenas desta apresentação em que Kurt entra no palco de cadeiras de rodas, fingindo estar muito doente. Após cantar algumas palavras, desaba no chão, imóvel, encenando a própria morte no solo sagrado de qualquer artista em frente a uma multidão de fãs.

Ao abrir o filme desta forma, Morgen reencena a queda de Kurt representada anteriormente no palco. Esta queda, que é mais moral do que física, certamente dialoga com a morte real do músico, porém também reforça um sentido de recomeço. Se Kurt levanta-se no palco onde esteve morto simbolicamente para prosseguir o show, o roqueiro levanta-se igualmente desta morte metafórica reeditada por Morgen para nos contar um pouco mais sobre sua vida e seus fantasmas. E, em muitos trechos, a genialidade e a loucura de Kurt falam não apenas por meio de áudios e filmes caseiros, mas também por conta de sua arte multiforme, pesquisada e retrabalhada pelo diretor para compor uma narrativa cinematográfica humanizadora. O cineasta propõe, então, um retorno do mito ao homem.

Como filmes documentários não são a expressão direta do real, colocando-se como resultado da subjetividade e da intencionalidade de quem os produziu, é interessante perceber como Montage of Heck se apropria de músicas, grafismos e textos de Kurt fazendo deles os principais registros sobre o músico. Com personalidade, o rock doc ressalta os processos biográficos e artísticos que moldaram Kurt como sujeito, destacando trechos importantes sobre sua infância e adolescência (inicialmente sólida, posteriormente hiperativa e finalmente errática), o encontro epifânico com o rock e seu casamento (químico e atribulado) com Courtney Love.

Há um cuidado especial nos efeitos gráficos que manipulam a arte de Kurt. Alterações discretas colocam em movimento os desenhos elaborados pelo guitarrista que gostava de artes visuais. Já animações complexas produzidas especialmente para o filme ilustram sequências inteiras, como uma em que Kurt comenta sua tentativa de suicídio durante os anos escolares. Além disso, há elegância estética na forma como frases, parágrafos, letras de músicas e poemas são apresentados. Em diversas passagens o material parece ser criado em tempo real pelo artista invisível.

O dimensionamento fílmico de Kurt segue com entrevistas com familiares e amigos que, junto com o material gráfico, ajudam a compor uma figura criativa, sensível e atormentada. Os depoimentos de Courtney são discretos. Muito à vontade frente à câmera, a viúva está livre da perseguição midiática a que foi submetida em documentários televisivos e, especialmente, no polêmico rockumentary Kurt & Courtney (1998), de Nick Broomfield. O resultado tímido da conversa entre diretor e viúva era esperado, afinal a realização de Montage of Heck foi autorizada por Love. Assim, Morgen passa longe dos intensos conflitos entre o casal, valorizando muito mais os momentos apaziguadores da criação da filha Frances Bean, produtora do longa, e até mesmo a crescente letargia dos roqueiros provocada pelo uso de drogas após o nascimento da menina.

Morgen também evitou se aprofundar nas questões sobre a morte de Kurt. O filme acaba antes do suicídio de forma abrupta, apenas repassando o caso vagamente. Além disso, deixou de fora o baterista Dave Grohl. Courtney obviamente sai ganhando, mas as lacunas apenas aumentam a sensação deste ser um documentário chapa branca. Outra falha do longa é não analisar a música e o processo criativo de Kurt mais claramente para propor alinhamentos entre a mente e a arte do músico. De qualquer forma, o retrato do artista se completa com áudios gravados pelo roqueiro em diferentes épocas, lembrando o documentário ensaístico About a Son (2006), no qual AJ Schnack apresenta entrevistas com Kurt feitas por Michael Azerrad, autor da biografia Come as You Are.

O filme poderá decepcionar os que gostariam de mais música e também os leitores das bios Come As You Are e Heavier Than Heaven, de Charles R. Cross, porém apresenta um resultado fílmico íntimo, sensível e bem embalado. No entanto, apesar do ótimo tratamento estético sobre matéria-prima tão rica, o grande trabalho de Brett Morgen é mesmo o de edição do material bruto. Ao resgatar artefatos importantes e reativar memórias sobre Kurt Cobain, a montagem que Morgen apresenta em Montage of Heck não é dos infernos. Pelo contrário.

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é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
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