Crítica

Travis Knight foi produtor de ParaNorman (2012) e Os Boxtrolls (2014), duas animações em stop motion indicadas ao Oscar. Assim, não é de se espantar que ele tenha escolhido o mesmo gênero para marcar sua estreia como realizador. O que deixa qualquer um boquiaberto, no entanto, é a excelência apresentada em Kubo e as Cordas Mágicas, sua primeira experiência como diretor. Partindo de um universo cheio de referências orientais, com códigos rígidos de honra e moral, onde fantasia e realidade convivem lado a lado, ele conseguiu elaborar um conto surpreendente, tanto pela trama que conduz, repleta de reviravoltas e subcamadas de leitura, como também pelo visual, que chega a ser inebriante pela beleza que carrega.

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Kubo é um garoto dono de uma habilidade incrível, talvez um dom recebido para lhe ajudar com o fardo que é obrigado a lidar. Capaz de elaborar as mais intrincadas dobraduras apenas com o dedilhar das cordas de seu banjo – o que lhe possibilita narrativas lindamente ilustradas, engenhosidade que lhe garante também o sustento com as doações que recebe em feiras e demonstrações – ele precisa ainda enfrentar diariamente a doença da mãe, sem forças para sair da caverna onde moram e com uma aparência tão pálida que é de se questionar há quanto tempo parece ter desistido da própria vida. A cada saída de casa, ele recebe apenas um único aviso: nunca retornar após o pôr-do-sol. Algo que, como se pode imaginar, acabará inevitavelmente acontecendo.

O roteiro de Marc Haimes e Chris Butler (animador de A Noiva Cadáver, 2005) transita por uma estrutura já conhecida, porém sem atropelos. Desenha-se o cenário de desolação inicial, apresenta-se o ponto de mudança e tem início, a partir de então, uma jornada de revelações, perigos e aventuras. Kubo é cobiçado pelas tias perversas e pelo avô, o Rei Lua. O que querem é buscar seu único olho – o outro lhe foi roubado logo após seu nascimento, em uma batalha que gerou o sumiço de seu pai. Quando o garoto acaba ficando desprotegido à noite, o primeiro ataque acontece. Para salvá-lo, a mãe praticamente renasce, mas num esforço tão grande que determina seu fim. A última magia que lhe resta será suficiente apenas para que o pequeno macaco que o protagonista carrega como amuleto ganhe vida. E se no caminho em fuga eles encontram ainda um guerreiro besouro, o trio estará, enfim, completo.

Os temas debatidos em Kubo e as Cordas Mágicas são bastante sombrios a ponto de não serem palatáveis num primeiro instante. Um pai desaparecido, uma mãe à beira da morte, um avô vingativo e duas tias mortíferas, que carregam máscaras com sorrisos artificialmente perfeitos para esconderem suas verdadeiras e deformadas faces. No meio disso tudo, uma criança valente, caolha e tendo como companhia apenas uma macaca falante e um besouro valente, porém um tanto desmemoriado. Dragões folclóricos e esqueletos gigantes com espadas enfiadas no crânio também fazem parte do roteiro, o que deixa claro a opção em não se direcionar a um público estritamente infantil. A atenção com os detalhes e a destreza na composição de cada um dos personagens é de arrepiar, mas ainda mais impressionantes são os cuidados com a trama, que alterna momentos de humor inteligente com outros de pura criatividade, em que o fôlego da audiência ficará sob suspense em mais de uma situação.

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Diante do confronto inevitável, Kubo terá não apenas que entender as motivações de seus parentes, como aprender que se somos fruto de nossas origens, também somos capazes de tomar decisões a partir das opções que nos são colocadas, e são tais escolhas que farão a diferença. Vibrante e obstinado na mesma linha do clássico Mulan (1998), da Disney, e muito mais profundo do que a trilogia Kung Fu Panda, da DreamWorks, Kubo e as Cordas Mágicas é um exemplo de construção narrativa, ao mesmo tempo em que exibe plena maestria pela animação que domina. Um filme mágico, tanto em forma quanto conteúdo, elaborado a partir do conceito mais fundamental de todos: família, afinal, são aqueles que se importam conosco e estão ao nosso lado independente das adversidades e de como se apresentem. Neste e em qualquer outro mundo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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