Crítica

Em Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang, Walter Salles se dispõe a contemplar e escutar, bem mais que propriamente a dialogar com um dos artistas mais importantes da China. Essa invisibilidade de quem filma é sinal de generosidade e entrega. Não fazer-se perceptível, deixando de lado qualquer indício de autoimportância em prol do personagem, é, talvez, o grande mérito do diretor brasileiro nesta produção proposta a uma investigação que parte dos afetos. A câmera acompanha Jia Zhang-ke de volta a Fenyang, cidade ao norte onde nasceu e na qual, durante o crescimento, começou a sensibilizar-se com as mudanças sofridas por seu país. O retorno à velha casa traz à tona algumas lembranças da infância, algo que ganha potência no encontro subsequente com as antigas vizinhas que por lá permanecem, reconhecendo-lhe no presente ainda como o moleque que perambulava pelas redondezas.

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Desde o início, Walter Salles aproxima a vida e a obra de Jia Zhang-ke, para isso, muitas vezes, ilustrando as rememorações com cenas de filmes dele, sobretudo os do início da carreira. Como efeito colateral, as obsessões e recorrências do cinema de Zhang-ke são cristalizadas na tela. Personagens que celebram a individualidade, contrapondo-se à tendência massificadora do regime político-social chinês, e os testemunhos das transformações das paisagens, decorrência das novidades, são as principais delas. À viagem puramente cinéfila, Salles prefere demonstrar a impossível dissociação entre homem e artista. As experiências pessoais, os filmes vistos, as lições da família, a relação com os lugares, são todos substratos da criação, motivadores de alguém que faz cinema para externar visões ora consternadas, ora curiosas, de um mundo que rui por conta do progresso. Morte e vida em constante alternância.

O potencial dramático dos espaços é outro elemento imprescindível do cinema de Zhang-ke que Walter Salles consegue evidenciar. As muralhas milenares, os escombros da província, ruas percorridas aleatoriamente, entre outros cenários, são mais que meras molduras à história, às trajetórias, pois representam as engrenagens influenciadas pelo tempo a despeito da vontade do indivíduo. Assim, as figuras, ainda que reajam como podem diante dos entornos à beira do colapso, são vítimas de certa impotência inerente à sua condição. Depoimentos de amigos, colegas de trabalho, velhos colaboradores, estudiosos, surgem na narrativa de maneira orgânica, orquestrados com boas doses de informalidade, o que denota a habilidade do diretor para criar momentos de conforto. Em virtude dessa proximidade conquistada, Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang soa como um documento pessoal.

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De filme em filme, somos levados a um contato mais intimista com Jia Zhang-ke, alguém que, como qualquer voz dissonante, enfrenta problemas para ser visto em seu próprio país. Em Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang o que está em jogo não é propriamente a vida nem o cinema do biografado, mas as interseções entre ambos, os pontos de convergência. Walter Salles prescinde de qualquer ambição autoral, de malabarismos estilísticos, em benefício da autoralidade alheia, da mais eficiente imersão do espectador na China profunda e, principalmente, nas ideias de um artista empenhado em mostrar as vicissitudes de seu país, território que, após uma violenta revolução cultural, ainda se encontra sob o jugo de um regime que precisa lidar com os paradoxos impostos pela globalização.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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