Crítica

A tragédia que vitimou o brasileiro Jean Charles de Menezes, em 2005, num metrô em Londres, alcançou notoriedade internacional por ser – erroneamente – associada à crescente onda de terrorismo mundial. E é esta história que foi levada aos cinemas em Jean Charles, uma co-produção entre Brasil e Inglaterra. Só que, ao invés de se centrar nos equívocos administrativos e no contexto policial que cerca toda a trama, o diretor Henrique Goldman preferiu mostrar o lado humano do principal envolvido. Uma decisão tão sábia quanto reveladora.

A capital inglesa, após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, virou uma das mais visadas cidades do mundo para os grupos terroristas. Afinal, é um dos lugares mais populosos, populares, culturalmente agitados e economicamente ricos de todo o planeta. E Jean Charles (interpretado por um cada vez melhor Selton Mello, num registro oposto ao recém visto em A Mulher Invisível, 2009, mas igualmente digno de aplausos), assim como centenas de milhares de imigrantes dos cinco continentes, sabia disso. E era por isso que havia saído de Gonzaga, pequeno vilarejo no interior de Minas Gerais, para tentar a vida por lá. Só que não tinha absolutamente nada a ver com o terrorismo. Queria vencer, ganhar dinheiro e poder voltar para sua terra em melhores condições. Não almejava justiça religiosa ou igualdade global. Suas ambições eram mais modestas, pessoais. Mas este rapaz pagou um preço muito alto devido a uma mera confusão, a uma forte pressão social e um clima de insegurança que diz respeito a todos nós, enquanto sociedade, indo muito além dos limites próprios do indivíduo.

Semanas antes, um atentado terrorista havia matado várias pessoas em Londres. Nos dias seguintes, outras três ou quatro tentativas similares haviam sido impedidas. Os cidadãos do mundo inteiro cobravam uma resposta. A polícia, despreparada, não sabia como agir, atropelando direitos e colaborando no crescimento de um sentimento de desigualdade e perigo constante. Num destes planos frustrados, policiais encontraram um mochila. Dentro dela, a carteira de associado de uma academia de ginástica. Nesta, um endereço. O mesmo do prédio onde morava Jean Charles e seus primos. Por essa infeliz coincidência, ao sair de casa, naquela manhã, ele foi confundido com um muçulmano, e acabou morrendo por isso.

Jean Charles não era santo. E, felizmente, o filme faz questão de deixar isso claro. Era um homem comum, como tantos outros, com acertos e deslizes. Estava envolvido em algumas pequenas contravenções, na luta diária para sobreviver num país que lhe é estranho e distante. Mas, no fundo, a impressão que temos é que iguais a ele existem milhares. Não havia porque ele se destacar. Porque virar símbolo de uma luta, de um anseio, de um pedido de paz que movimenta milhões ao redor do mundo. Mas é isso que ele acabou se tornando. Para o bem e para o mal.

Goldman assumiu a condução deste projeto pegando o vácuo deixando por Fernando Meirelles, que havia sido convidado pela BBC e, por outros compromissos, acabou recusando a proposta. Todos os elementos estavam ao dispor deste cineasta pouco conhecido, mas, pelo que vemos aqui, dono de um ótimo potencial. Ao invés de assumir um tom de denúncia barata e clichê, que caísse na vala do lugar comum,  conseguiu criar uma obra humana e pertinente. Todo mundo sabe o fim desta história. Jean Charles morreu, foi cruelmente assassinado, e até hoje não lhe foi feita a devida justiça. Mas Jean Charles, o filme, agora existe, levando uma mensagem que envolve e instiga, provocando o questionamento e a reflexão. Um longa maduro e comovente, que mexe com cada um de nós, como se estivéssemos no lugar do protagonista. Até porque, mais cedo ou mais tarde, lá estaremos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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