Crítica

São incontáveis os filmes protagonizados por anti-heróis sedutores, daqueles que adoramos odiar (ou odiamos adorar); são personagens pérfidos, de moral deturpada e sem quaisquer limites para conquistar o que almejam. Não devemos, mas torcemos por eles, vibramos secretamente com seus feitos e maldizemos os imbróglios ou antagonistas que os prejudicam. Essa dinâmica ambígua funciona no recente A Qualquer Custo (2016), no clássico Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas (1967) e até mesmo no cultuado Taxi Driver (2011), por exemplo. O thriller dramático Irrepreensível (2016), de Sébastien Marnier, vai um pouco além: é impossível nutrir qualquer empatia por sua protagonista, uma psicopata na noção mais realista do termo, mas de alguma forma permanecemos hipnotizados por seus atos.

Constance (Marina Foïs) é uma corretora imobiliária que perde seu emprego em Paris e retorna para suas origens em uma pequena cidade francesa, com a intenção de recuperar seu antigo emprego. Sua personalidade é determinada e muito autoconfiante, inabalável mesmo quando se depara com o desprezo de chefe, amante e colegas de trabalho do passado. Ela não parece ter deixado muitos motivos para ser querida por eles, uma vez que abandonou a cidade com a pior das reputações, mas tenta mudar o cenário ao insistir que retornou apenas porque sua mãe doente precisava de cuidados – ainda que visite a senhora no hospital apenas ocasionalmente e sem vontade aparente.

Apesar de todas as complicações, os esforços de Constance estão concentrados em reconquistar sua posição na imobiliária, que por fim acaba ocupada pela jovem Audrey (Joséphine Japy). Sem muitos recursos e frustrada, ela é forçada a viver na antiga casa de sua família, onde não tem energia elétrica ou outras comodidades, então decide dedicar seu tempo para Audrey. Obsessivamente. Seu nome, afinal, representa constância, algo perceptível em sua persistência e obstinação por aquilo que deseja: o emprego, o ex-amante, o atual amante, a ruína daqueles que estão em seu caminho.

Marina Foïs não é estranha a papéis controversos. Assim como Isabelle Huppert, ela é perfeita para compor mulheres repletas de camadas e passíveis de múltiplas leituras, qualidades evidentes em Polissia (2011), Para Poucos (2010) e Relacionamento à Francesa (2015). Todas as emoções de Constance estão em algum lugar das nuances que a atriz permite evidenciar, outras figuram ocultas em uma composição enigmática, por vezes assustadora – como quando ela deita nua num chão frio de azulejos e encara o nada, apática.

Com o estudo de uma difícil personagem brilhantemente decifrada por Foïs e Marnier, Irrepreensível evoca o cinema do mestre Claude Chabrol e suas protagonistas questionáveis, que tantas vezes guardavam interiores monstruosos num exterior de normalidade – o que as tornavam ainda mais impressionantes.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Graduado em Publicidade e Propaganda, coordena a Unidade de Cinema e Vídeo de Caxias do Sul, programa a Sala de Cinema Ulysses Geremia e integra a Comissão de Cinema e Vídeo do Financiarte.
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