Crítica

Na primeira cena de Irmão, filme venezuelano de 2010 dirigido por Marcel Rasquin e parte da II Mostra Lume Filmes, temos em primeiro plano uma bola de futebol murcha, furada, estragada, enquanto a câmera vai de encontro a um bebê abandonado no meio do lixo. Esta apresentação, que poderia ser apenas uma opção estética do realizador para simbolizar o determinado esporte como um dos motes do longa-metragem, na verdade resume a história ao mostrar que situações adversas podem jogar com os nossos sonhos de forma irreversível.

O bebê citado é encontrado por uma criança, Julio, que jurava ter ouvido o choro de um gato, e sua mãe, que resolve criá-lo. Julio e Daniel (que acabou com o apelido de Gato) crescem como irmãos inseparáveis, apesar da diferença de personalidade de ambos, e são os craques do time de futebol da comunidade onde vivem. Um olheiro convida ambos para um teste no grande time da cidade, o Caracas Futebol Clube. Mas nesse meio tempo, uma tragédia acontece: a mãe deles é morta em um tiroteio causado por um traficante da vila em que moram. E a partir daí os sonhos de ambos começam a desmoronar.

É neste ponto que o filme se livra de algumas amarras dos minutos iniciais. Até então o espectador pode ter a sensação de estar assistindo a mais um Cidade de Deus (2002) ou Linha de Passe (2008), já que a vida na favela e o futebol permeiam a narrativa, que felizmente consegue ir muito além. Como acontece em boa parte dos países da América Latina e de Terceiro Mundo, o esporte acaba sendo uma chance de fuga para uma vida melhor para estes garotos, que até então tem como opções apenas empregos que pagam muito pouco ou o tráfico. Julio, por exemplo, ajuda a sustentar a casa, mesmo antes da mãe morrer, com dinheiro sujo do comércio de drogas. Até um certo momento do filme, um diálogo ironiza a situação, quando o técnico do time da favela fala para Gato que “aqui não é o Brasil”, já que a maioria dos craques do futebol acaba “surgindo” do país tupiniquim, enquanto vizinhos como a Venezuela tem casos mais raros.

A fotografia e direção do arte do filme também evidenciam este confronto entre o belo (o sonho) e o sujo (a destruição interna dos personagens): se quando a mãe estava viva, a casa, apesar de muito simples, era limpa, bem arrumada, após a sua morte acaba sendo algo bagunçado. Os takes da favela mostram um conjunto de casas e muros destruídos, cheios de falhas, como o próprio caráter dos personagens. Vale ressaltar que esta falha de caráter não é algo que determina os habitantes como bons ou ruins, mas sim ressalta as várias facetas. O próprio líder do tráfico tem diversas nuances. Quando Julio vai em busca de vingança querendo saber quem matou sua mãe, o chefão do local ressalta que o garoto não deveria desperdiçar seu tempo com seu senso de justiça, mas sim que deveria treinar cada vez mais para ser um craque e sair daquela vida, já que os próprios traficantes teriam apenas “dois anos para serem mortos” ou até menos.

O primeiro longa-metragem de Marcel Rasquin acaba se revelando um grande filme ao realçar a vingança como um meio de autodestruição infalível, vide o final que pode não parecer uma surpresa, já que é o caminho trilhado pelos personagens. Não só os sonhos são destruídos, como a própria amizade dos irmãos, até então inquebrável, começa a se encher de brigas e desconfiança. Julio quer matar quem tirou a vida de sua mãe, enquanto Gato exprime sua dor jogando cada vez mais e virando o alvo principal do Caracas Futebol Clube, o que gera cada vez mais conflitos entre os dois. As cenas dos jogos são um destaque à parte, com belas montagens que mais parecem videoclipes de tanto ritmo que tem. Algo que dá outra conotação à tão difundida expressão “futebol-arte”. Por todas as qualidades narrativas e técnicas, sem falar nas excelentes atuações, certamente Irmão é um dos melhores filmes exibidos neste ano.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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