Crítica

Segundo as palavras de uma orientadora, Claudia (Emanuela Fontes) “escolheu um caminho errado”, isso porque é pobre e alimenta o sonho de ingressar na faculdade de música. Ela toca piano, mas não tem o instrumento à disposição para ensaiar. Instaurada a questão central, o diretor Marcelo Toledo vai fazer da protagonista de Invasores um símbolo da exclusão e da dificuldade de alterar um rumo que é praticamente imposto como herança. Outra intenção é a de discutir obliquamente a importância da arte, sobretudo no que diz respeito ao seu consumo indiscriminado, seja por pessoas de baixa renda ou da alta burguesia, categorização esta recorrente na boca dos personagens. Nilson (Maxwell Nascimento), namorado da menina, é o típico (e tipificado) mano das quebradas, embora nesse quesito de alinhamento com um registro que resvala no estereótipo não seja tão sintomático quanto os amigos preocupados em escalar prédios e deixar neles seus protestos pichados.

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Há beleza anárquica na forma como Nilson resolve a adversidade mais iminente de Claudia. O arrombamento de ambientes que possuem pianos, para que enfim ela possa praticar, com vista a um futuro melhor, é tratado pelo diretor como transgressão justificada, reivindicação legítima de espaços que deveriam ser menos excludentes e mais democráticos. O título do filme, aliás, tem duplo sentido, o literal e simbólico, já que não se trata apenas de jovens invadindo fisicamente propriedades alheias, mas buscando ocupar lugares, como o panteão sacralizado da música erudita, negados às suas condições sociais. Muito boas, as intenções, infelizmente, encontram diversos contratempos pelo caminho, barreiras que não lhes deixam transcender a dimensão conceitual. A começar pela protagonista, interpretada de maneira apática, com quem não conseguimos estabelecer empatia, fragilidade em parte compensada por outros personagens que transmitem o que falta a ela na essência.

Apesar de possuir qualidades no que tange à imagem, Invasores carece de soluções visuais que deem conta de evitar a saturação da palavra como catalisadora das relações, dos conflitos e das realidades marginalizadas que o diretor Toledo tenciona deflagrar. Ás vezes soa impostado e pouco orgânico o discurso inflamado dos jovens contra os valores das classes abastadas. As conexões familiares são pouco exploradas, assim como outras perspectivas que escapam àquele núcleo reduzido. A trama se desenvolve num crescendo de desilusão, com Claudia sendo achatada pela realidade que teima em contradizer seus sonhos, considerados delírios de grandeza por boa parte dos que com ela convivem. Contudo, sua apatia não nos permite sentir, de fato, o tamanho dos obstáculos a serem transpostos para alcançar objetivos. Frente a esse panorama, não raro Nilson toma para si os holofotes, pois seus dramas condensam sutilmente os elementos essenciais à camada menos epidérmica do longa-metragem.

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Em Invasores o risco é assumido por essa gente empobrecida como única possibilidade de comprar o tênis e o celular da moda, de ser vista e ter uma voz ativa, ou seja, de inserir-se. O filme aponta motes relevantes, propõe um olhar menos verticalizado sobre a periferia e seus moradores, mas não consegue desenvolvê-lo numa instância além do pré-estabelecido, das pretensas verdades disseminadas em larga escala. Culpa da condução pouco sutil dos acontecimentos, da necessidade de vociferar reiteradamente contra os dominantes, quando o próprio contexto poderia nos fornecer as chaves para entendermos a sordidez de um sistema responsável por desencorajar os anseios de alguém, em virtude deste ter nascido em determinado lugar, por ser filho de trabalhadores braçais ou algo que o valha. O saldo é uma visada obviamente crítica, mas que não encontra tanta ressonância quanto poderia, principalmente por conta das simplificações.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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