Crítica

Toda filmografia conta com um unicórnio, aquela obra estranha às demais. Nela, sentimos dificuldade em reconhecer os traços que costumam identificar o seu autor - isso se este não surgir ali de maneira modificada. Imagens é o unicórnio de Robert Altman.

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Escrito pelo diretor a partir do romance de Sussannah York, o filme traz Cathryn (interpretada pela própria York) lidando com uma realidade distorcida, permeada por visões do passado. A condição psicológica da personagem é dada logo no início, na série de ligações estranhas que colocam a fidelidade do marido sob suspeita. O incômodo a desestabiliza de tal forma que acaba incorporado à direção de arte de Leon Ericksen. Em poucos minutos, o confortável apartamento que divide com Hugh (Rene Auberjonois, de Onde os Homens são Homens, 1971), antes branco e iluminado, acaba substituído por uma cenografia sombria e claustrofóbica.

Uma vez introduzido no mundo soturno da protagonista, o público acompanhará a sua saga na tentativa de livrar-se dos fantasmas que a atormentam. As alucinações são compostas por Rene (Marcel Bozzuffi), um ex-marido francês morto em acidente aéreo; por Marcel (Hugh Millais), vizinho e amante que não tem limites quando o assunto é seduzir Cathryn; e a imagem de si própria, como a visão de um esquizofrênico que passa a se enxergar desde fora.

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Apesar de ter início na cidade, o longa se passa praticamente todo na casa de campo de Hugh. Ali, entre narrações em off de um livro denso, Cathryn alterna ora convivendo com o presente, ora negociando com as suas "imagens" - marcadas na narrativa pela recorrência de elementos que balançam, como os cristais pendurados na casa. Movido pelo suspense provocado pela trilha do sempre competente John Williams (Star Wars e Harry Potter), Imagens constrói uma proposta fílmica que flerta com as estéticas de Ingmar Bergman, quanto ao psicológico, e de Alfred Hitchcock, no que tange ao suspense. O mestre inglês é o espelho para o qual Altman – que dirigiu vários episódios da série Alfred Hitchcock Presents – fita durante a construção da atmosfera do filme, ainda mais óbvio se pensarmos na cena do banho de Cathryn, ao final do filme, como homenagem ao clássico Psicose (1960).

Para além da competência técnica vista em tela, com movimentos de câmera in e out arrojados, seguros e bem aplicados, Imagens deixa claro que o talento de Altman não reside no mesmo espectro de Bergman ou de Hitchcock. A sua habilidade não é a da densidade psicológica ou a da construção do suspense - e se tivesse seguido na mesma toada possivelmente seria lembrado hoje apenas como um realizador secundário. Robert Altman é um contador de histórias. Em especial, as da vida americana - ainda melhores quando banais. O seu verdadeiro estilo é o de zombar com seriedade da cultura norte-americana, construindo personagens peculiares, desatentos aos seus próprios vícios. Quando faz isso, ainda que por pouco tempo, Altman consegue ferir a hipocrisia dos Estados Unidos como poucos. Será a verve iconoclasta que o permitirá, criar a cena de Cathryn que, assediada por Marcel frente ao fantasma do ex-marido, ainda consegue responder a Hugh sobre como conduzir o jantar que está por vir, compondo umas das passagens mais imorais - e de humor negro - do cinema americano.

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Mais selvagem do que se imagina e menos impressionante do que se espera, Imagens é um unicórnio cujo desenho parece ter sido realizado com muito esmero. E quando pronto, percebeu-se que o tempo dedicado resultara em um belo chifre, mas que, apesar do impacto, algo importante fora deixado para trás - e seria este o coração.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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