Crítica

A pequena cidade de Valdívia é o macrocosmo de Ilusões Óticas, primeiro longa-metragem do chileno Cristián Jiménez. Habitam neste espaço Juan (Iván Alvarez de Araya), um ex-cego que recupera parcialmente a visão; Rafa (Eduardo Paxeco), segurança iniciante de um shopping; a jovem Manuela (Paola Lattus), irmã de Rafa e empregada da companhia de saúde VidaSur; David (Gregory Cohen), colega de Manuela demitido da companhia por incompatibilidade profissional (entenda-se corte de custos).

Aparentemente tão distintos, o ponto que une os personagens passa pelo desejo atravessado pela incompletude, característica plenamente humana. Por uma ironia sugestiva – pura provocação aos espectadores – nos deparamos com o contraste, por um lado, entre a expectativa e a forma como enxergamos e lidamos com nossos anseios em busca da mítica “realização pessoal” e, por outro, a maneira caricata, desinteressante e obviamente ineficaz pela qual nossos desejos chegam aos outros.

Neste sentido, a companhia de saúde VidaSur sintetiza não apenas a estrutura do mundo moderno, erigido sob um corporativismo exclusivamente voltado para o lucro, mas também o conteúdo, refletido nas relações pessoais marcadas pela artificialidade e comodismo. A frustração, conseqüência de um processo pautado por altas exigências que resulta em falsas promessas de realização, reconhece na aparência – pista direta para a ilusão que criamos a partir de como o outro nos enxerga – a causa de todos os males, elevando-a a solução de uma infelicidade geral.

Ainda que o tema não seja propriamente inédito, o diretor nos surpreende ao abordá-lo a partir de uma perspectiva completamente autoral. A linguagem cinematográfica composta pela estética fria da pequena cidade chilena unida ao comportamento e às realizações apáticas dos personagens configura um cenário que apresenta muito menos um drama propriamente estruturado do que uma comédia de humor negro com influências aleatórias de Hal Ashby, Takeshi Kitano e dos irmãos Coen.

Conhecemos Rafa nos primeiros dias do seu treinamento para segurança de um shopping. Em meio à monotonia da rotina de auxiliar clientes com as compras e retirar crianças da escada rolante, flagra uma senhora rica e charmosa (Valentina Vargas) roubando roupas de uma das lojas. A beleza e o inusitado o deixam estupefato a ponto de trocar a primeira oportunidade de demonstrar competência profissional pelo silêncio, requisito básico para que se iniciasse o flerte, visivelmente malogrado, com a ladra.

Contudo é a secretária de VidaSur, Manuela, talvez a menos interessante dos personagens, quem encarna a mais evidente das críticas propostas por Ilusões Óticas. Insatisfeita com sua parca expectativa profissional – as pessoais parecem não existir – Manuela encontra na cirurgia plástica – na sua descaracterização – uma forma de conseguir a estima que o cotidiano lhe priva. Sem perceber, é claro, que logo na mesa ao lado, o colega e judeu secular David encontra nela a única alegria cotidiana.

Por último, mas longe de ser menos importante, está Juan. Apesar de estar ao lado da narrativa por boa parte do filme, o ex-cego que passa a enxergar parcialmente é figura central do filme. A idéia do mundo e, conseqüentemente, das pessoas como representações passa necessariamente pela visão. Nas sombras, Juan imaginava as cores do dia e as formas dos objetos. Ao ganhar a luz, toda a projeção que fazia do mundo foi confrontada com aquilo como este efetivamente nos aparece. Por experimentar a realidade almejada e a encontrada, Juan torna-se o único a perceber a leviandade do mundo enquanto aparência. Confuso, sem escolha e a estabilidade da realidade que dominava, seu desafio maior parece não ser se adaptar, mas acreditar naquilo com que se depara.

Em um nível mais profundo, Jiménez nos recorda que o cinema não é a grande invenção ilusionista por acaso. Quando o ser humano tem por hábito construir e mover-se em meio às ilusões que cria, a arte cinematográfica cumpre papel muito similar a cada um de nós, com a diferença de que nos permite adentrar à elucubrações muitas vezes impensáveis.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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