Crítica

Uma jornada pela natureza do homem. Essa foi a proposta do diretor Yann Arthus-Bertrand para a realização de Humano: Uma Viagem pela Vida, seu mais recente e impressionante documentário. Fotógrafo especialista em imagens aéreas, ele foi responsável antes por longas como Home: Nosso Planeta, Nossa Casa (2009) e Planeta Oceano (2012). Como se percebe pelos títulos, o tom ‘National Geographic’ é forte em sua produção. No entanto, dessa vez ele não se ocupou apenas com a postura de observador – ainda que o filme traga imagens belíssimas – mas foi além, dando voz e ouvidos àqueles que deveriam ser os mais interessados na preservação disso tudo ao nosso redor: nós mesmos.

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Os números são impressionantes. Foram 2.020 pessoas entrevistadas, em 60 países e em 63 línguas diferentes, num prazo de dois anos. Ao se sentar com cada um destes depoentes, as mesmas perguntas eram feitas: você se sente livre? Qual o significado da vida? Qual a experiência mais difícil que você teve que enfrentar? E o que você aprendeu com ela? Qual é a sua mensagem para os habitantes do planeta? Diante destes questionamentos, homens, mulheres, idosos e crianças foram colocados frente à uma câmera, tendo atrás deles apenas um fundo preto. Os identificamos pelos idiomas e sotaques, pela veemência de suas declarações ou tranquilidade em suas respostas. Cada um tem uma força própria, porém em conjunto adquirem uma relevância surpreendente, como se suas vozes se multiplicassem a ponto de não poderem ser mais ignoradas. Ao menos junto àqueles que se depararem com esta obra tão genuína.

Bertrand e sua equipe não fazem desse exercício, no entanto, uma tarefa árdua para o espectador. Ainda que o resultado seja exaustivo – a versão completa do filme possui 3h10 de duração, enquanto que a lançada nos cinemas brasileiros foi reduzida para 2h20 – ele é hábil em renovar o interesse do público durante o desenvolvimento de sua narrativa, construída de modo a agrupar seus relatos de acordo com os temas abordados: pobreza, guerra, imigração, intolerância, preconceito, homofobia. Ao invés de olhar para números e estatísticas, o diretor se concentrou naqueles que enfrentam esses problemas diariamente. Assim, conseguiu que seu filme fosse desenvolvido a partir de três pilares: a voz do povo (as entrevistas), a voz da terra (as impressionantes e inacreditáveis imagens que compõem os interlúdios entre um bloco e outro), e a voz da música. Nesta última, destaca-se o talento de Armand Amar, compositor vencedor do César por O Concerto (2009). Os dois já haviam trabalhado juntos em produções anteriores, e aqui conseguem dar à trilha sonora a característica de estar ligada intimamente às imagens, abrilhantando a fotografia e fornecendo ritmo ao filme.

De refugiados em Calais à guerrilheiros na Ucrânia, de trabalhadores braçais de Bangladesh à camponeses no Mali, de presidiários norte-americanos à miseráveis no Brasil. O olhar do cineasta oferece um holofote àqueles que invariavelmente estão à margem da sociedade. Muitos são os depoimentos que emocionam apenas pela história que contam. O homem que aprendeu o que era amor com o perdão da mãe da mulher que assassinou. A mulher que passava fome em uma favela enquanto que na rua ao lado ricos esbanjavam comida. Os milhares que fugiam do interior da Índia pela falta de água e iam trabalhar na construção civil, erguendo edifícios milionários com piscinas particulares a cada andar. O chefe da tribo que convida seus inimigos para virem jantar com ele, pois está na hora de aprendermos a compartilhar, e não mais a lutar pelas mesmas coisas.

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De todos os rostos, cada um belo ao seu próprio modo, um único se destaca: o do ex-presidente do Uruguai, José Pepe Mujica. Conhecido pelo estilo austero de governar, ele não aparece para ditar regras ou evidenciar seu exemplo. Por outro lado, surge quase ao final apenas para compartilhar pontos de vista. Num mundo cada vez mais dominado pelo dinheiro, o que de fato este significa? Afinal, apenas acumular coisas perde logo o impacto, ao passo que tempo é o que todos buscam. E se esse é implacável, não há de ter chegado o momento de aprendemos a valorizar o que fazemos com o que temos em mãos? Humano: Uma Viagem pela Vida emociona sem ser piegas, partindo de uma realidade bastante simples – somos todos irmãos, não? – porém dona de uma verdade incontornável: se não nos dermos conta disso com urgência, logo será tarde demais.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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