Crítica

Margarethe von Trotta fez uma obra de poucos desvios. Neste seu novo filme, não menor nem menos importante do que aquele sobre Rosa Luxemburgo (Rosa Luxemburgo, 1986) – embora distante dele, temporal e esteticamente – Hannah Arendt segue à risca certa forma de narrar muito cara à cineasta. Ela abandona qualquer possibilidade prática que ocasione um afastamento do olhar do espectador diante do assunto maior, mantém a mesma paciência na construção dos diálogos, evita rupturas, propõe o avanço sutil dos acontecimentos. Se isso estiver correto, torna a protagonista mais responsável pela pulsão de sua voz, de suas ideias, de sua agonia. Abre caminho para que Barbara Sukowa, intérprete da filósofa, tome conta da ação e corporifique as contradições imanentes ao pensamento radical. Na medida em que o filme não faz o retorno biográfico de Arendt e, por aí também, se encerra antes mesmo de suas ideias vigorarem no ambiente acadêmico e na mídia, a obra de von Trotta, a bem dizer, é uma história de resistência.

Cobre o período de 1961 a 1964, tempo histórico crucial no pós-guerra do século passado, que compreende o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, por sua participação fundamental no Holocausto nazista. Arendt, que a esta altura gozava de prestígio na Academia (alguns anos antes havia publicado As Origens do Totalitarismo, sua magnum opus), foi a Israel acompanhar o caso como correspondente da revista The New Yorker, pois deveria escrever uma série de artigos sobre o julgamento. Segundo interpretação da filósofa a partir de observações in loco, ele agiu de acordo com as ordens que recebia de cima, como um escravo de ideias, burocrata, vítima da centralização e da hierarquia do poder. Foi além: disse que nada havia de monstruoso em Eichmann, ele sequer continha as bases ideológicas do antissemitismo corrente, e que era um “homem comum”, falível, frágil, tão consciente quanto alheio à proporção das coisas. Não necessariamente vítima das circunstâncias, mas apenas uma peça do xadrez que, apesar do papel chave na condução do Holocausto, poderia ser substituído por qualquer um. Concebido este pensar, logo chegou à banalidade do mal, o mal ilimitado.

Hannah Arendt compreendeu o que hoje nos parece claro, pensando num contexto brasilianista e sul-americano, isto é, que substancialmente a própria dominação em exercício, as forças colonizadoras não puderam se estabelecer sem a consciência e o auxílio de nossas elites que, mesmo após a Independência, mantiveram o poder formal por perto, inexpugnável ao status de dominador. Ao escrever que havia entre os judeus aqueles que cooperaram com as forças ideológicas e militares hitleristas, Arendt não estava ousando enfrentar a dor de muitos, nem a canalhice de uma minoria totalitária, mas simplesmente combatia a coisa político-filosófica ela mesma, na opulência na qual se ela oferecia, na radicalização do intelecto, sem concessões e aconselhamentos pueris. A verdade, grosso modo, lhe parecia inconciliável com as carícias das donzelas.

Mas de nada serve tentar encontrar reflexos contemporâneos da análise de Arendt sem antes colocar as potências de cada caso em um ambiente de objetividades e formas autônomas da representação dos discursos. A discussão não pode ser leviana a ponto de tornar “a teoria” aplicável a toda barbárie verificada. De fato, o filme de Margarethe von Trotta não se posiciona filosoficamente acima das obviedades do pensamento de Arendt, prefere o discurso contido e didático, adota a exposição midiática de uma forma brutal de pensar, do pensar, de como pensar longe da superficialidade.  É televisiva, no limite, a forma do filme. Mas fica claro que Hannah conviveu no espaço do debate onde muitas vezes se confunde a experiência do pensamento radical com a subtração de bases morais.

No curto espaço de tempo que o filme atravessa, sua relação com Martin Heidegger fica registrada apenas em flashbacks (sua memória afetiva, seu nascimento para a Filosofia). Mas eis que, quanto menos Heidegger há, mais violenta é sua presença na vida de Arendt, mais inscrita com sangue e ideias (ideias que sangram intravenalmente) essa presença-ausente se delineia no pensamento da filósofa, sua herdeira intelectual e amante. Há muito a se dizer na presença silencioso do outro. Em toda trajetória exposta, fissuras de relações compõem o enunciado de uma ideia quase inatingível à época, de uma personagem que, superadas as adversidades de seu próprio intelecto, vencidos seus limites, consegue transcender a práxis política, desgarrar-se da ignorância sem aceitar a falsa sabedoria.

Mas não há nada demais nisso, nada especial na captura de uma personagem-história, o que a diretora bem reconheceu ao filmá-la sem excentricidades estilísticas, assim como em Lincoln (2012), de Steven Spielberg. Na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, aprendemos: só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos.  Nesse sentido, é importante que o cinema, arte que pode ressuscitar os anjos e exorcizar os demônios, dedique suas imagens e suas palavras para a violência das ideias.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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