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Sinopse

Nishi recebe a notícia de que sua esposa está internada no hospital gravemente doente. Ainda abalado, ele descobre que seu parceiro na polícia foi baleado numa emboscada. Então, Nishi decide largar a corporação.

Crítica

O ano de 1997 foi especial para o cinema japonês. Alguns meses após o apenas bom A Enguia, de Shohei Imamura, inexplicavelmente dividir a Palma de Ouro em Cannes com a obra-prima iraniana Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami, Hana-Bi: Fogos de Artifício, de Takeshi Kitano, venceu o Leão de Ouro em Veneza. O país obtinha, portanto, os prêmios máximos de dois dos três maiores festivais de cinema do mundo – sem contar que foi também nesse ano que Kyoshi Kurosawa lançou um de seus grandes filmes, o apavorante A Cura, e Naomi Kawase estreou em ficções, com Suzaku.

Hana-Bi foi realizado por Kitano um par de anos após o grave acidente de moto que quase lhe tirou a vida e o filme está impregnado por essa sensação de proximidade da morte. A narrativa, centrada no policial Nishi (o próprio Kitano), inicialmente se divide em três linhas temporais, apresentadas de forma fragmentada, em porções de acontecimentos traumáticos na vida do protagonista e de figuras próximas a ele. Na primeira, Nishi, já um homem amargurado pela perda da filha pequena e a doença subsequente da esposa, acompanha seu parceiro Horibi (Ren Osugi) até uma tocaia que visa prender um membro da Yakuza; na segunda, Nishi e outros dois policiais buscam vingança contra esse mafioso que feriu gravemente Horibi; na terceira, o protagonista já deixou a polícia, após ser desencadeador do tiroteio que vitimou fatalmente um colega de profissão, se dedicando a cuidar da esposa doente e sobrevivendo graças a empréstimos tomados junto à Yakuza que outrora perseguia. Kitano constrói o primeiro terço de Hana-Bi embaralhando cenas dessas três linhas temporais, forçando o espectador a construir um pequeno quebra-cabeça que serve para estabelecer a situação em que se encontram os personagens destacados dali em diante: Nishi, claro, em suas relações com a companheira à beira da morte e com os criminosos aos quais deve dinheiro, e Horibi, agora um homem solitário e debilitado fisicamente, buscando razões para continuar vivo. Hana-Bi se torna, então, um filme bem menos preocupado com o gênero policial a princípio filiado do que com olhar para essas figuras que caminham entre a vida e a morte, sempre flertando com a última, já que profundamente desiludidas com a primeira.

Impressiona a delicadeza com que Kitano engendra tanto as cenas do casal, focadas em ações prosaicas (uma brincadeira de adivinhação com cartas, um passeio por um templo budista, a explosão de fogos de artifício numa noite tranquila etc.), importantes para revelar a absoluta dedicação de Nishi à companheira moribunda e como ele, sujeito violento e introspectivo, consegue ainda encontrar paz ao lado dela, quanto aquelas em que Horibi se dedica à pintura como forma de extravasar seus sentimentos, lidando com a solidão e com desejos suicidas. Os quadros de Horibi que aparecem no filme, aliás, por vezes preenchendo toda a tela, foram na verdade pintados pelo próprio Kitano durante a recuperação do acidente de moto sofrido em 1994, o que ressalta a intersecção entre a experiência do diretor e as de seus personagens. A realização de Hana-Bi, filme que fala da proximidade da morte e da atração por ela, parece ter sido parte fundamental desse processo de volta à vida pelo qual passou Kitano.

Toda a delicadeza desses momentos de Hana-Bi é brutalmente contrastada com a violência que surge nas cenas com a Yakuza, cujo universo é recorrente no cinema de Kitano. A máfia japonesa está presente, por exemplo, num de seus primeiros filmes, Boiling Point (1990), em sua única incursão como diretor nos EUA, Brother: A Máfia Japonesa Yakuza em Los Angeles (2000), e, recentemente, numa encarnação bem mais brutal, em Outrage (2010) e Beyond Outrage (2012). Mas, se esses dois últimos apresentam toda a complexidade do funcionamento das organizações criminosas que controlam o submundo do país, com suas disputas e hierarquias internas, em Hana-Bi, apesar de tratados como homens violentos e crueis, os mafiosos não chegam a ameaçar realmente Nishi. Eles não são páreo para a absoluta frieza diante da morte demonstrada por esse protagonista já excessivamente machucado pela vida. Daí os confrontos entre eles acabarem por representar, também, momentos cômicos do filme, já que Nishi sempre derrota seus antagonistas com certa facilidade, revelando a covardia desses diante de sua força descomunal. É como se Kitano, num momento de renascimento, visse a força de seu protagonista, proveniente da dor e do amor, como maior que aquela exercida pela Yakuza por meio puramente do poder e do dinheiro. Em meio à melancolia que permeia a narrativa de Hana-Bi, portanto, não deixa de haver também certo otimismo.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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