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Sinopse

A jovem Justine nasceu no seio de uma família de veterinários. Aos 16 anos, a aplicada e talentosa adolescente está prestes a ingressar na faculdade, seguindo os passos de seus familiares na mesma universidade onde sua irmã mais velha faz sua graduação. Os trotes promovidos por veteranos começam já nos primeiros dias de aula e, em um dos desafios promovidos, Justine é forçada a comer carne crua pela primeira vez em sua vida. As consequências desse ato são inesperadas e logo Justine descobre sua verdadeira natureza.

Crítica

Fazendo jus à tradição da família de veterinários, Justine (Garance Marillier) passa no vestibular e, de cara, precisa lidar com a aspereza do trote. A tensão, porém, acaba em festa, num conjunto de luzes, batidas estridentes e muita sensualidade. Estranho à jovem introspectiva, esse cenário convidativo ao hedonismo é muito bem construído pela diretora Julia Ducournau como tentador contraste às expectativas da estudiosa. O primeiro encontro com Alexia (Ella Rumpf), a irmã já iniciada nas fraternidades e nos procedimentos discutíveis dos veteranos, se dá normalmente, ainda que fique evidente a discrepância do temperamento das duas. Na segunda vez em que elas se veem, as coisas não são tão amenas, já que a mais velha induz a caçula a comer um fígado de coelho, a despeito da conduta alimentar que as une. A partir dali, a protagonista de Raw passa a nutrir uma necessidade de ingerir carne, de preferência crua, não apenas de animais, mas também de seres humanos.

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Em paralelo à descoberta desse apetite bizarro, Justine começa a sentir desejos sexuais por seu colega de quarto, o homossexual Adrien (Rabah Nait Oufella). Frágil como metáfora do amadurecimento traumático de Justine, Raw extrai sua identidade da maneira como registra a violência que media boa parte das relações. O cardápio é variado, com Justine comendo vorazmente o dedo recém-decepado da irmã, gente degustando cérebros expostos de acidentados em autoestradas, a autópsia de um cachorro, e por aí vai. A realização de Julia Ducournau até possui méritos por criar um clima de crescente brutalidade, mas peca ao não estofar esse entorno com desdobramentos minimamente interessantes. A rivalidade das irmãs é modulada pelo “aprendizado” de Justine, mas num nível tão superficial que nem serve para justificar a sequência em que elas, fartas uma da outra, brigam literalmente às mordidas.

Julia Ducournau aposta alto no impacto de sua abordagem crua e frontal, esquecendo, porém, de desenvolver a contento as esferas que poderiam servir de complemento simbólico aos atos extremos. O ambiente estudantil é outro ponto problemático em Raw. A verdadeira autoridade que impera no campus é a dos veteranos, já que os calouros sofrem o pão que o diabo amassou, inclusive sendo obrigados a frequentar aulas cobertos de sangue, com a conivência de professores mais preocupados em relativizar o esforço de Justine, minimizando o fato dela se empenhar e tirar boas notas. O filme se divide entre os dilemas da protagonista, principalmente após ela constatar-se vítima de apagões nos quais seu lado predatório aflora ainda mais, e a preparação de cenas chocantes, por seu teor de sangue e procedimentos limítrofes, como a sanha por sessões de antropofagia com pedaços de amigos e/ou paqueras.

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Há boas doses de gratuidade em Raw, produção mais inclinada a assombrar o espectador que necessariamente a fazer da violência um sintoma. Nem bem filme de gênero, tampouco totalmente desfiliado de uma tradição alimentada por seres comedores de carne humana, ele oscila demasiado entre esses dois polos que poderiam muito bem conviver harmoniosamente. Determinadas pontas soltas contribuem para a sensação de vazio que sobrevém à sessão. Muito longe de ser um exemplar aborrecido ou destituído de qualidades, porém, este longa-metragem deixa exposta uma valorização exacerbada da violência gráfica como pilar narrativo. O fiapo de enredo não é suficiente para sustentar a frágil estrutura que se apresenta. O fator que mais chama a atenção é mesmo o canibalismo, a falta de pudor em mostrar pessoas comendo partes de outras. O clímax tenta oferecer uma explicação, mas soa somente como remendo, artifício canhestro que falha no almejo de um encerramento potente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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