Crítica

Clint Eastwood é um dos maiores nomes do cinema norte-americano. Ele surgiu nos spaghetti-western na década de 60, alcançou a fama nos filmes de ação nos anos 70 e 80 e se consagrou no início dos anos 90. Desde então, tem merecido o respeito e a admiração do público e da crítica. Portanto, quando afirmou estar se despedindo das câmeras como Gran Torino, é importante prestar atenção. Até porque este não é só um filme-testamento, que homenageia e dialoga com toda a sua obra anterior, mas também é um impactante trabalho que sobrevive por si só, repleto de méritos e altamente relevante nos dias de hoje. Um trabalho completo.

Walt Kowalski, seu personagem em Gran Torino, é certamente um dos mais retrógrados e detestáveis já interpretados por Eastwood. Republicano convicto, conservador até o último fio de cabelo, o encontramos pela primeira vez durante o velório da esposa, provavelmente o seu último contato com o mundo civilizado. Agora está tudo com ele, um ser obviamente inapto para o contato social. Ele não faz questão em agradar ninguém, e tem sempre uma reclamação na ponta da língua – a neta que não se veste apropriadamente, os filhos que são uns bananas, a sogra interesseira, o padre novato e inexperiente. Agora, pior mesmo para ele é o que se tornou sua vizinhança. Antes, um bairro de subúrbio, típico de famílias americanas dos anos 50, de comerciais de margarinas, hoje se transformou num refúgio de estrangeiros ilegais e reduto de violência e abusos. Mas ele é um sobrevivente, e está ali, em pé. Onde ficará até ser derrubado.

A trama começa quando o rapaz da casa vizinha, um adolescente de origem hmong (sudeste asiático, região entre Laos e Vietnã), tenta arrombar o precioso Gran Torino – um modelo Ford, cheio de estilo e mais americano impossível – como teste numa prova de iniciação numa gangue. Como o garoto é pego, Kowalski o expulsa de sua garagem. Mas o fracasso terá conseqüências, e quando os outros mafiosos aparecem para levar Thao (Bee Vang) para um outro desafio, quem acaba salvando a pele dele é o velho vizinho. Aos poucos eles desenvolvem uma relação de protegido e mestre, o mesmo acontecendo com a irmã mais velha do menino, Sue (Ahney Her). Mas eles não vivem em uma cápsula, e as tensões sociais que os cercam não tardarão em colocá-los novamente em choque. E será neste momento que Kowalski terá que decidir se irá seguir no mesmo caminho de uma vida inteira de fantasmas e desilusões ou mostrar que é capaz de mudar e fazer sacrifícios em nome de um bem maior.

Gran Torino é um filme que entrega muito mais do que promete. O trailer – péssimo, por sinal – aponta apenas para a trama básica, sem permitir que seja vislumbrado todas as nuances de uma obra repleta de camadas. Pode ser lido apenas como a história do velho antiquado e preconceituoso que, por seus modos brutos e grosseiros, acaba entrando em conflito com bandidos muito diferentes daqueles que conheceu na guerra há mais de 50 anos, ao mesmo tempo em que se torna guardião de toda uma comunidade. Mas, por outro lado, os que se dedicarem encontrarão um emblemático conto de poder e entrega, de solidariedade e justiça. Há muito mais a ser discutido aqui do que tentar adivinhar quem será o herdeiro do protagonista. O Gran Torino é mais do que um automóvel, e sim um símbolo de uma época que, se não volta mais, precisa saber se adaptar a um mundo controverso e problemático que se desenha a cada novo dia.

Vencedor do National Board of Review de Melhor Ator e Melhor Roteiro, Gran Torino foi indicado ainda ao Globo de Ouro de Melhor Canção. Por isso que foi uma grande surpresa quando o filme foi ignorado em todas as categorias do Oscar 2009, não tendo sido indicado a nada. Uma injustiça, ainda mais se levarmos em conta o impressionante desempenho comercial do longa, o melhor de toda a carreira de Eastwood – foram quase US$ 150 milhões arrecadados só nas bilheterias norte-americanas! Se Clint Eastwood nunca mais voltar a aparecer diante às câmeras, tudo o que sentiremos é uma enorme saudade, porém certos de que esta foi uma despedida não só digna, mas também merecedora de muitos aplausos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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