Crítica

Hegemonia: influência, liderança, supremacia (etc) de um país, de uma cultura, de um grupo (etc) sobre outrem.

Não acreditem nas palavras acima apenas porque ali estão escritas. Abram outra aba no seu navegador e pesquisem por vocês mesmos – algo que todo cientologista, ou membros de outras religiões, iriam tentar lhe persuadir fortemente a não fazer, aliás. Isso porque qualquer culto religioso parte de uma base hegemônica para poder exercer sua influência. Explico: nascido e criado num engenho de açúcar, o “fulaninho de tal” acredita que é normal, aceitável e ético possuir escravos. Quem, nos dias de hoje, poderia culpá-lo? Foi nessa realidade em que ele cresceu, e na qual foi ensinado que, se não concordasse com esses termos, seria excluído socialmente daquele contexto. “Fulaninho de tal” e ninguém mais quer ser excluído porque milhares de anos de evolução o ensinaram que ele precisa de outras pessoas para continuar existindo. Então, por um medo – na maioria das vezes inconsciente, quase genético – de aceitar como correta qualquer outra realidade que não a sua, indivíduos tendem a ser naturalmente hegemônicos por todo o planeta.

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As pessoas costumam dizer que somos guiados pelo capitalismo, mas isso acontece por hegemonia, ou seja, porque nesse contexto nascemos. E somos hegemônicos por egoísmo, pelo medo enraizado de sofrer danos pessoais. Então, a pergunta a partir da qual Alex Gibney constrói o documentário Going Clear: Scientology and the Prison of Belief – “porque alguém decide em uma religião e não em outra, ou ainda em nada?” – vem praticamente respondida, e tudo o que o cineasta faz nas duas horas seguintes é ilustrar o processo exercido por um culto religioso como a Cientologia. Afinal, tem-se aqui um exemplo prático, uma vez que sua história é convenientemente curta para ser estudada – tem pouco mais de 60 anos.

Ora, a religião “ataca” – ou apela, para ser menos agressivo – um dos nossos pontos mais fracos e primordiais: se você não acreditar nisso e aquilo, estará errado, estará fora, estará contra nós. Nomeiem como quiserem – hereges, pecadores, descrentes ou, como chamam os cientologistas, Pessoas Opressoras. A ideia é a mesma: vender – e é sintomático que se use este termo tão comercial para descrever o processo – uma realidade absoluta que, ou você acredita e está salvo, ou não e é um opositor condenado. Todas as religiões partem dessa ideia, e que pessoa em sã consciência quer ser condenada? Você deixa de acreditar no Paraíso católico para cair no Nosso Lar espírita. É muito difícil não se submeter a alguma crença, e uma vez nelas, é ainda mais complicado não crer que todo o resto está errado, porque aceitar que possam haver outros pontos de vista e permitir que eles coexistam com o seu é o mesmo que não cumprir o seu papel como membro daquela determinada crença e, portanto, é ser alguém que não está exercendo-a direito, e logo, passível de punição. Como não ser hegemônico?

Talvez L. Ron Hubbard soubesse conscientemente disso quando fundou a Cientologia, em 1952. Ou pode ser que não. É possível que tenha sido ele mesmo uma vítima da própria criação, estando tão mergulhado no contexto que temia uma exclusão ou punição caso não aceitasse e levasse a diante a “palavra” do seu culto. É possível. Gibney apresenta depoimentos e relatos sobre Hubbard a partir dos quais se pode supor uma instabilidade psicológica alarmante do outrora escritor – que foi recordista em seu próprio tempo, tendo publicado mais de 1.000 livros! Assim como também deixa em aberto se Ron foi, ou não, um articulado manipulador. Felizmente, o cineasta apresenta uma visão muito cética e altamente crítica em relação ao culto retratado, e uma opção de faceta perdoável em que LRH – apelido carinhoso de seus seguidores – poderia estar certo não é apresentada ao espectador que se submeter ao documentário.

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Pelo contrário, depois de aprofundar como Hubbard explorou as fraquezas naturais psicológicas de qualquer pessoa para coagir e angariar seguidores – processo retrado na ficção com maestria por Paul Thomas Anderson no excelente O Mestre (2012) – Gibney desloca seu olhar para David Miscavige, que assumiu a direção da Igreja da Cientologia após a morte de seu fundador. Dono de uma postura ditatorial em relação ao empreendimento – algo que o documentário mostra em imagens de arquivo, mas acertadamente não comenta, é que ele chegou a instituir uniformes militares para si mesmo e seus oficias – ouvimos depoimentos chocantes e comoventes de pessoas que eram praticamente aprisionadas nas instalações da Sea Org., uma espécie de braço “militar” desta fé. Além disso, há relatos de perseguição, ataques morais e mesmo violentos contra antigos membros ou críticos da seita.

Todas as informações são trazidas com muita propriedade e embasamento não por especuladores, mas por figuras como o cineasta Paul Haggis (Crash: No Limite, 2006), membro por quase 30 anos, e Marthy Retbun e Mike Rinder, antigos oficiais de alto escalão da Igreja, além de assessores de imprensa e amigos de figuras como John Travolta e Tom Cruise, dois dos mais famosos cientologistas no mundo. Junto a documentos e registros inegáveis, o documentário expõe estratégias de coação, chantagem e perseguição de pessoas que Miscavige considerava – ou ainda considera – ameaças. Nada muito diferente, ainda que de um modo muito mais moderno, do que faziam os inquisidores na Espanha do Século XV.

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Nesse ponto é que Going Clear deixa de ser uma denúncia bem-vinda dos abusos, da corrupção e do próprio poder exercido pela relativamente jovem Cientologia e passa a ser um retrato socialmente relevante de práticas idênticas – e, portanto, alarmantes – de muitas outras religiões que estão aí há mais tempo. Sim, existem pessoas de bem lá fora, engajadas em objetivos humanamente importantes, que carregam um crucifixo, um livro dos espíritos ou seja lá que símbolo for na frente do peito. Gibney não nega isso em momento algum. Chega, inclusive, a deixar que os entrevistados comentem sobre as boas ações exercidas por vários membros, mas não deixa de expor o óbvio: qualquer bem mínimo resultante de uma crença, vale todo o ódio, preconceito, conflitos e perdas consequentes da sua própria existência? Não poderiam as pessoas exercerem as mesmas boas ações sem precisar justificá-las com um credo? Alex Gibney é magistral ao levantar com clareza essas perguntas, e esperto o suficiente para deixar a resposta sob responsabilidade do espectador.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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