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Sinopse

Giselle, depois de anos estudando no exterior, retorna ao Brasil e encontra seu pai, Luccini, um rico criador de cavalos, casado com Aidée. A madrasta se apaixona por Giselle. Durante umas férias passadas na fazenda, chega Serginho, filho do primeiro casamento de Aidée. Inicia-se então um jogo de relações amorosas entre Giselle, Serginho, Aidée e Ângelo, o capataz, um emaranhado de relações que Luccini finge não perceber.

Crítica

A narrativa de Giselle começa e termina com um letreiro, exibido sobre a imagem de um cogumelo atômico, que diz o seguinte: “Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em decadência, a principal característica é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações e os desencontros. Os dias que hoje estamos vivendo não diferem muito daqueles que antecederam a destruição daquelas sociedades. Em Giselle, retratamos através de uma célula da nossa sociedade, a família, uma família qualquer, um momento da nossa realidade atual. Uma realidade de desencontros, desamores, promiscuidades, procuras e frustrações através do sexo, que por modismo e desinformações, passou a ser algo sem nenhum valor, ao mesmo tempo em que, inconscientemente, é uma tábua de salvação”. Difícil não esperar, a partir daí, encontrar um filme que fale de sexo sob uma perspectiva conservadora, que se aproveite da predileção popular do brasileiro dos anos 70 por filmes safados para apresentar uma hora e meia de soft porn, mas encerrar com um julgamento moral implacável sobre comportamentos e práticas que fogem à norma.

Surpreendentemente, não é exatamente isso que acontece. O filme que existe entre as duas exibições do letreiro conta, de maneira absolutamente livre, mesmo transgressora, uma história sobre liberdade sexual. Seus personagens jamais são apresentados simplesmente como homens e mulheres depravados, logo, moralmente condenáveis. Pelo contrário até. O diretor Victor di Mello, em mais uma parceria com um dos astros do período Carlo Mossy e sua produtora Vidya Filmes, se mostra bastante simpático às figuras que povoam a narrativa de Giselle. Sobretudo à personagem-título (Alba Valéria) e aos dois homens mais próximos dela: Serginho (Ricardo Faria), filho de sua madrasta, e Ângelo (Mossy), capataz da fazenda de seu pai. Os três são vistos como portadores de desejos despidos de qualquer preconceito, verdadeiramente libertadores nesse sentido.

Giselle, a personagem, na verdade, atua na narrativa de Victor di Mello quase como o Visitante (Terence Stamp) do clássico Teorema (1968), de Pasolini. Ela passa pela vida daquela família como um furacão, seduzindo quase todos (só seu pai, homossexual enrustido, permanece incólume, na verdade interessado nas suas próprias perversões, já que é um pedófilo contumaz) e libertando-os das amarras que os prendiam a uma vida de aparências. Isso fica explícito na sequência final de Giselle, em que são mostrados os destinos de cada personagem: a protagonista passa a viver o “amor livre” numa praia de nudismo; Serginho, a madrasta e mesmo o pai de Giselle (único a não ser tocado carnalmente por ela) assumem-se homossexuais, com os dois últimos mantendo relacionamentos com mulheres e homens, respectivamente, mais jovens (mas não mais crianças, no caso do pai, ao menos nesse epílogo), enquanto o último passa a se apresentar como transformista; Ângelo, por sua vez, se torna michê, servindo a senhoras ricas.

Cabe questionar, então, as razões para a presença do referido letreiro no início e no fim do filme. Considerando que em 1980 o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, poderia se tratar de uma imposição da censura do regime para a liberação de Giselle? Ainda que plausível, essa explicação não encontra base na realidade, já que não há no processo censório do filme qualquer determinação do tipo. Sobra então a possibilidade de essas inserções fazerem parte de uma estratégia de Victor di Mello para agradar a essa mesma censura, forçando uma leitura moralista via letreiros para que o conteúdo libertário de sua obra passasse despercebido. Faz bastante sentido, ainda que, nesse caso, seja um pouco estranho que o diretor não tenha optado, posteriormente, por retirar tais inserções, permitindo que Giselle fosse contemplado em todo seu esplendor corrosivo. Bem, talvez ele desejasse manter na tela essa tensão historicamente demarcada, ou talvez di Mello nutrisse sentimentos paradoxais por seus personagens e os letreiros não tenham alguma relação com a censura. Fato é que seu filme é uma bomba potente (nenhum trocadilho com o cogumelo atômico) que revela muito dos anseios comportamentais de uma sociedade em transformação. Uma pequena pérola, perdida em meio ao preconceito geral da intelectualidade com as chamadas pornochanchadas, que urgem ser redescobertas.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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