Crítica

Apesar do título, que faz uma alusão dupla à personagem de Gemma Arterton (de mesmo nome) e ao clássico de Gustave Flaubert Madame Bovary (cuja primeira edição é de 1857), o verdadeiro protagonista de Gemma Bovary: A Vida Imita a Arte é Fabrice Luchini, que entrega mais uma preciosa atuação como Martin Joubert, um literato que largou a vida como dono de uma livraria na cidade grande para se mudar para o interior com a família. Como nessa nova vida a atividade de fazer pães artesanais não se confirma a mais estimulante, logo a prática anterior volta a se manifestar como verdadeira paixão, e é quando as coisas começam a se misturar. Não se trata, no entanto, de mais um daqueles filmes que trilham sua narrativa pela tênue linha entre verdade e ficção, e sim algo mais original, que parte de um texto consagrado para dar origem à outro. Bem que, apesar da iniciativa intrigante, nem sempre alcance o efeito esperado.

O novo endereço não foi escolhido ao acaso. Joubert selecionou aquele destino com bastante cuidado – afinal, foi naquela mesma vila onde Flaubert, mais de um século antes, escreveu seu livro mais famoso e o qual tanto admira. Quando, no meio de sua rotina tediosa, descobre que o nome do novo casal de vizinhos, recém chegados da Inglaterra, é Bovery, quase não consegue conter a excitação – afinal, a semelhança com a heroína literária é questão de apenas uma letra. Isso mexe com ele a ponto de querer saber mais a respeito dos novatos. De amigo, logo assume o cargo de conselheiro. Ele, no entanto, não quer fazer parte da história deles – está mais interessado em observá-la de perto, atento para qualquer detalhe que se assemelhe ao enredo há muito escrito. E quando percebe que as coisas começam a trilhar o mesmo caminho trágico das páginas, sua preocupação aumenta – afinal, da posição que ocupa, acredita que somente ele poderá evitar tal desfecho.

Se Luchini permeia o filme de Anne Fontaine – a mesma que havia entregue antes o igualmente irregular Coco Antes de Chanel (2009) – com uma presença sempre cativante, que vagueia entre o fofoqueiro e o auspicioso, justificando a curiosidade que desperta no espectador, ele não consegue encontrar contrapartida em sua parceira. Arterton pouco faz além de ser o vulcão sexual a que se propõe. Ela é a mulher casada com um homem mais velho (Jason Flemyng, que tem exatamente vinte anos a mais que ela) que não a satisfaz, o que a leva se envolver com outros homens durante sua ausência. Entre eles estão Hervé (Niels Schneider, de Amores Imaginários, 2010), um jovem inconsequente, e Patrick (Mel Raido), um antigo e ciumento caso com o qual retoma contato. Um é a leveza, outro o peso. E a inconstância dos motivos que a levam de um a outro prejudicam a narrativa, estendendo-a além da proposta inicial. E o final que esse vai e vem reserva beira o constrangedor, manchando de forma irreversível a experiência como um todo.

Gemma Bovery: A Vida Imita a Arte é um filme bem fotografado – Christophe Beaucarne é antigo parceiro da realizadora – e emula bem um visual quase onírico, como se quisesse de fato brincar com o que está acontecendo entre os personagens e com o que poderia ser apenas imaginação do condutor da trama. Mas este questionamento logo se esvazia, e o que resta é uma boa ideia que começa de forma promissora, mas logo se perde pelos próprios caminhos que escolhe trilhar. Talvez o livro de Posy Simmonds (também autora do mais envolvente O Retorno de Tamara, 2010, outro longa estrelado por Arterton) justificasse a ligação com Mme. Bovary, mas o que se tem em cena é apenas uma tentativa pouco consistente de aproveitar o carisma de um para se valer de algo que, infelizmente, não confirma o interesse despertado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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