Crítica

Projeto acalentado durante anos por John Huston, Freud: Além da Alma se propõe a ser uma cinebiografia completa e instrutiva a respeito do pai da psicanálise. No entanto, estamos falando de um cineasta de talento superlativo, dono de uma visão única de cinema, o que serve de garantia aos curiosos e interessados de não se deparar com um trabalho convencional e aborrecido, e sim ousado e investigativo, que vai atrás de questões não só sobre a vida pessoal do protagonista, como também a respeito das formulações de suas maiores descobertas, teorias que até hoje repercutem no meio médico e psicológico. De qualquer forma, mesmo para aqueles que usarem o filme apenas como uma porta de entrada para um universo novo e repleto de possibilidades, ainda assim a obra terá cumprido seu intento.

As ambições eram altas, e elas começaram quando Huston escolheu ninguém menos do que Jean-Paul Sartre para escrever o roteiro de Freud: Além da Alma. O escritor, conhecido pelas ideias polêmicas que defendia e por uma forte conotação sexual em seus trabalhos, parecia ser a pessoa perfeita para esta tarefa. Mas ainda que tenha sido indicado ao Oscar como roteirista de Les Orgueilleux (1953) e tenha tido diversos textos seus adaptados para o cinema e teatro, Sartre era mais um homem das letras do que do ambiente audiovisual, e a essa constatação logo chegou o diretor, que de posse do resultado oferecido pelo literato percebeu que, para levá-lo às telas na íntegra, teria que fazer um filme com mais de dez horas de duração. Criou-se um impasse, e visto que nenhum dos dois cedia em suas condições, coube ao realizador escolher um novo autor que conseguisse transformar aquele material em um formato mais tradicional. Mas não se engane: ainda que essas modificações posteriores tenham sido feitas, o olhar diferenciado de Sartre ainda permanece.

Freud: Além da Alma começa sua história no ano de 1885, quando Sigmund Freud era um jovem estudante de medicina que ainda morava com os pais e dava seus primeiros passos rumo às inquietações da mente humana. O filme, assim como sabiamente fez Steven Spielberg em Lincoln (2012), restringe sua trama a um período específico de tempo – são apenas cinco anos – oferecendo aos espectadores a oportunidade de acompanhar as origens dos estudos que marcaram a vida desse profissional para sempre. Presenciamos seus primeiros conflitos com a Academia vienense, a ida a Paris para se aprofundar nas ideias do Prof. Charcot, o contato inicial com o hipnotismo, o transe e as terapias alternativas (à época). Através de alguns pacientes bastante representativos, temos um indício dos raciocínios que o levaram a questionar o poder da sexualidade na infância e traumas como o Complexo de Édipo, entre outros.

Muito do sucesso de filme – que teve um forte impacto nas bilheterias ao ser lançado nos cinemas, no final de 1962 – se deve também às impressionantes atuações de Montgomery Clift (como Freud) e Susannah York (como Cecily Koertner, uma garota histérica que, a partir do momento que passa a ser atendida por ele, serve de referência para diversos casos clínicos pontuais com os quais o doutor se envolveu durante a vida). Segundo seu biógrafo oficial, Clift teria sofrido nas mãos de John Huston durante as filmagens, pois o cineasta – com quem havia trabalhado um ano antes em Os Desajustados (1961) – lhe pressionava constantemente sobre segredos íntimos e perturbações psicológicas, usando técnicas do próprio retratado para confrontar o astro a respeito de sua velada homossexualidade. O processo pode ser questionável, mas o resultado em tela é impressionante. Já York, indicada ao Globo de Ouro como Melhor Atriz em Drama, resume com eficiência as diversas contradições que vítimas desse tipo de enfermidade costumam levar aos seus atendentes.

Longo (são quase 140 minutos de duração), didático em muitos momentos e abrangente em seus posicionamentos, Freud: Além da Alma é uma obra imprescindível para qualquer um que já fez, pretende fazer ou ao menos se questiona a respeito da validade de tratamentos psiquiátricos e psicológicos. Assim como o recente Um Método Perigoso (2011), que focava em um Freud já na maturidade em confronto com as ideias do jovem Carl Jung, Huston oferece neste trabalho maior uma rara oportunidade de nos aprofundarmos em uma das mentes mais complexas e geniais dos nossos tempos. Temos aqui um longa que é ao mesmo tempo respeitoso com o personagem central e inquieto em seus questionamentos e dúvidas. Uma feliz união que não pode ser jamais ignorada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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