Crítica

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Responsável pela obra considerada precursora do Cinema Novo, Rio 40 Graus (1955), Nelson Pereira dos Santos manteve-se como um dos líderes do movimento ao longo de toda a sua evolução, que sempre acompanhou diretamente o panorama sociopolítico brasileiro, e atingiu o auge de seu experimentalismo entre o final dos anos 60 e início dos 70. É justamente nesse período que se localiza Fome de Amor, longa que dá continuidade à transgressão mais radical vista no controverso El Justicero (1967). Aqui o cineasta subverte um projeto a princípio impessoal - a adaptação do livro História para Se Ouvir de Noite, de Guilherme Figueiredo, encomendada pelo produtor Herbert Richers e pelo ator Paulo Porto – em uma alegoria sobre os movimentos revolucionários da América Latina.

A proposta de Pereira dos Santos é a de desconstrução, adotando uma narrativa fragmentada e não linear composta por flashbacks, flashforwards e sequências que transitam entre o real e a representação dos desejos dos personagens para apresentar a trama sobre o casal Felipe (Arduíno Colassanti), um pintor fracassado, e Mariana (Irene Stefânia), uma jovem pianista de origem abastada, que retornam de Nova York ao Brasil para viver em uma ilha supostamente pertencente a ele. Lá conhecem Alfredo (Paulo Porto), um renomado botânico e revolucionário que perdeu a visão, a audição e a fala devido à explosão de uma bomba, e sua bela esposa Ulla (Leila Diniz), os verdadeiros donos do local com quem desenvolvem uma relação marcada por conflitos e tensão sexual.

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A influência da Nouvelle Vague, especialmente de Godard e Resnais, talvez seja mais evidente do que em trabalhos anteriores de Pereira dos Santos, que cita ainda o cinema underground americano de Jonas Mekas e Stan Brakhage como inspiração. Na esfera temática, particularmente no contexto político, o longa guarda um parentesco próximo com Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, enquanto traços do cinema do italiano Michelangelo Antonioni podem ser encontrados tanto na concepção visual – a elaborada fotografia de Dib Lutfi – quanto no que tange ao tratamento da questão da incomunicabilidade. Um tópico explorado não só através de Alfredo e sua mudez, mas também de Mariana que, encantada pelo discurso pretensamente revolucionário de Felipe e pela trajetória de Alfredo, se fecha em uma bolha ideológica.

A garota, que passa a ler Mao Tsé-Tung e a questionar as atitudes - ou a falta delas - de seu companheiro, aos poucos perde o contato com o mundo externo, com a humanidade, como deixam claras as cenas em que repetidamente nega o convite de Felipe e Ulla para ir à praia. “Onde está o povo?”, questiona Mariana, sendo respondida por Pereira dos Santos com a imagem de um grupo de crianças à beira-mar acenando para ela. Na contramão desse isolamento, a pianista se aproxima cada vez mais de Alfredo, chegando mesmo se envolver sexualmente com ele, fato que representa uma nova ruptura de comportamento, já que até então a garota se mostrava recatada, especialmente na comparação com a desinibida Ulla.

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Da mesma forma que Mariana e Alfredo, Felipe e Ulla também se atraem por suas similaridades. Vivos, luminosos e carnais, opostos à frieza e à intelectualidade de seus respectivos pares, ambos gradualmente expõem suas verdadeiras intenções: ele um falso idealista, sem talento para a pintura, que foge dos EUA temendo ser enviado ao Vietnã e, no fundo, deseja apenas o dinheiro da esposa. Já ela se mostra cansada de conviver com a condição debilitada do marido, alguém que talvez um dia já tenha realmente amado e admirado. Esse sentimento de Ulla é transposto por Pereira dos Santos para a causa revolucionária. O diretor demonstra certa desilusão, ou descrença, em relação à situação a qual a esquerda e os intelectuais brasileiros estavam submetidos durante a ditadura, sendo levados ao exílio e perdendo sua voz, como Alfredo.

A sensação de incômodo paira na atmosfera criada pelo cineasta, que flerta com o suspense à medida que Felipe e Ulla cogitam eliminar seus cônjuges para tomarem suas fortunas. O senso de improviso é outra marca do trabalho de Pereira dos Santos, extraindo atuações naturalistas de todo o elenco, principalmente de Diniz, que transmite perfeitamente a extroversão de Ulla. Essa liberdade se transforma em total anarquia na longa sequência final da festa - uma espécie de orgia, ainda que apenas insinuada e não explícita - na qual o comandante italiano (Manfredo Colassanti) e suas duas acompanhantes se juntam ao quarteto.

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Afinal, é em seus excessos que a burguesia de fato se revela - como mostra Fellini em A Doce Vida (1960) ou Marco Ferreri em A Comilança (1973) - e cada um assume seu papel através das fantasias que vestem: Felipe de bobo da corte, Ulla de “A Verdade”. Enquanto Mariana vestida de rainha e Alfredo de barba e boina à la Che Guevara vagam perdidos e solitários em outra ilha, formando um quadro que reflete a visão pessimista de Nelson Pereira dos Santos sobre possibilidade de revolução no Brasil. Pois um movimento guiado por uma ingênua embriagada e um homem que não enxerga seu caminho, nem possui voz para comandar, está fadado ao fracasso. Uma metáfora que, apesar de todo o hermetismo em sua concepção, possui uma força notável.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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