Crítica

A calamitosa situação dos refugiados na Europa já é considerada por muitos a pior crise humanitária do continente desde o final da Segunda Guerra Mundial. Este tema tão urgente e complexo ganha o foco das lentes do cineasta italiano Gianfranco Rosi, de Sacro GRA (2013), neste seu mais recente documentário, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim e que tem como cenário a ilha de Lampedusa, na costa sul da Itália, local que se tornou um dos principais pontos para o desembarque de milhares de imigrantes vindos da África e do Oriente Médio. Após vários meses vivendo no povoado, Rosi apresenta um registro delicado do cotidiano dos moradores locais, que segue paralelamente ao tom dramático dos resgates de embarcações refugiadas.

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As diferenças entre os dois universos retratados por Rosi começam pelo fato de um deles, o dos habitantes de Lampedusa, possuir uma figura protagonista que serve de guia para a narrativa: o garoto Samuele. Existem outros personagens que transitam pelo longa, como o DJ da rádio local, o mergulhador, o casal de idosos ou mesmo o pai e a avó de Samuele, mas é o expressivo jovem de 12 anos que ganha maior destaque. Em suas aulas de inglês, jantando, ouvindo histórias de marinheiro de seus parentes e especialmente confeccionando e utilizando seu estilingue para brincar com amigos, Samuele sintetiza com genuína inocência a vida pacata, e praticamente alheia à tragédia imigracional, da maior parte dos moradores da ilha.

Para os cidadãos comuns, os fatos surgem como uma notícia no rádio, lamentada por uma senhora enquanto prepara o almoço, mas pouco parecem interferir em sua existência. A exceção é feita ao médico diretor do hospital de Lampedusa, Pietro Bartolo, que serve como o elo entre estes dois mundos, cuidando com a mesma dedicação tanto da saúde de Samuele quanto dos refugiados que necessitam de socorro. Um exemplo desta postura está na cena em que atende uma imigrante grávida de gêmeos e tenta a todo custo descobrir o sexo do segundo bebê, uma sequência que ganha ares de humor, algo que se repete esporadicamente ao longo da projeção.

Do outro lado, as figuras dos refugiados surgem de modo gradativo, inicialmente apenas com as vozes dos chamados de rádio recebidos pela guarda costeira. Nas imagens dos primeiros resgates, registradas com grande proximidade por Rosi, os imigrantes formam uma massa em que distinções de nacionalidade e idiomas são feitas apenas pelos oficiais para seus registros, pois a situação extrema enfrentada por todas estas pessoas as coloca em um estado de igualdade quase absoluta. Quase, pois mesmo nestas condições, a divisão de classes se faz presente quando somos informados de que os passageiros têm seus lugares nas precárias embarcações definidos pela quantia paga por sua passagem para a esperada liberdade.

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Aos poucos, o cineasta apresenta os rostos que formam esta verdadeira Torre de Babel, quando cada refugiado é fotografado ou pouco depois, ao se dividirem por país em times para jogar futebol no abrigo a que são encaminhados. É neste momento que também ganham, pela primeira vez, a palavra, entoada por um dos refugiados que relata de forma passional sua jornada de fuga, em uma mistura de canto e reza acompanhada por outros do grupo. Uma cena que encontra espelho, em termos de carga dramática, no depoimento do Dr. Bartolo, que mesmo em meio à frieza aparente dos procedimentos dos resgates, revela não conseguir deixar de se envolver emocionalmente com cada caso atendido.

Abdicando de ferramentas corriqueiras da linguagem documental, como a narração em off, Rosi aposta no poder das imagens, concebendo planos plasticamente elaborados. Cenas como a de Samuele atirando com seu estilingue nos cactos ou a dos refugiados na paisagem noturna envoltos nos cobertores térmicos dourados possuem um grande apuro visual. A postura muitas vezes voyeurística do cineasta pode ser questionada, como se explorasse a estética da tragédia passivamente à espera de uma imagem de impacto, como a da lágrima de sangue. De qualquer forma, a força destas imagens é inegável, e talvez esta opção pela não interferência, além de certo distanciamento, seja mesmo com o intuito de reservar ao espectador a tarefa da reflexão e do debate.

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Rosi prefere fazer uso das metáforas para expor esta realidade ignorada por muitos, e assim diversos fatos ganham leituras mais simbólicas, o principal deles sendo o problema de visão de Samuele. Diagnosticado com um “olho preguiçoso”, o garoto é obrigado a utilizar óculos e um tampão em sua vista boa para obrigar seu outro olho a trabalhar igualmente. É o que o diretor pretende que faça o espectador, que enxergue o outro lado desta situação desesperadora que ocorre ao alcance do olhar de todos.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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