Crítica

A figura mítica de Fausto tem como origem o médico e alquimista Johannes Georg Faust, que teria vivido entre o final do século XV e início de XVI na Alemanha. A popular lenda fala do homem que vendeu sua alma ao diabo e gerou diversas narrativas, sendo a mais conhecida delas a peça teatral de Goethe, dividida em duas partes ao longo de sessenta anos. Pois é nesta obra que Friedrich Wilhelm Murnau, um dos mais importantes realizadores do cinema mudo, se inspirou para realizar a obra-prima Fausto, um fracasso de bilheteria na época que, ao longo do tempo, se provou uma das peças artísticas mais deslumbrantes da sétima arte.

Este foi o último filme realizado pelo diretor na Alemanha, já deixando de lado alguns traços do expressionismo alemão, apesar da dualidade luz e sombras serem dominantes nas sequências que emulam famosas representações em pinturas do conto nefasto. A cena inicial dos Cavaleiros do Apocalipse é um belo exemplo da genialidade do cineasta e sua preocupação em transformar o cinema num estado de arte que rivaliza com esculturas e pinturas. Os esqueletos montados em cavalos perante a fumaça que toma conta de seus caminhos prenunciam a chegada de Mefisto (Emil Jannnigs), o demônio de asas gigantes que toma conta da tela.

É neste fim de mundo permeado por pestes que matam a todos sem possibilidade de cura que Fausto (Gösta Ekman), o alquimista, chega ao limite da frustração e faz um pacto com o diabo em pessoa para salvar a todos, ao mesmo tempo que lhe é concedida a eternidade. Em mais uma cena belíssima e muito mais assustadora que as atuais crianças endemoniadas que surgem no cinema de terror de hoje, Murnau envolve círculos de fogo em toda sua plenitude para aproximar o homem do senhor das trevas, numa representação quase bíblica do que poderia ser o inferno. Porém, o pedido de Fausto tem um grande revés, já que o próprio se torna um demônio, ainda que disfarçado pelo corpo rejuvenescido, mas com o medo de todos ao redor. Afinal, o mesmo não pode sequer enxergar símbolos religiosos sem ficar na defensiva.

Não há amor que salve Fausto. Mesmo quando ele se apaixona à primeira vista por Gretchen (Camilla Horn), a garota foge de seus braços por enxergar a verdadeira face do homem à sua frente. Em toda sua extravagância poética, Murnau disserta sobre a finitude do ser humano e como sua arrogância em querer controlar tudo, inclusive o mundo, faz com que ele se perca num vazio existencial sem fim. Fausto não é nada mais que um arquétipo de todas as tentações sofridas pelo homem e como o preço para lidar com elas é o sofrimento eterno. É a solidão, a necessidade de se conectar ao outro sem assim poder fazê-lo. A atmosfera barroca e sombria, recheada de referências religiosas e pagãs, atestam ainda mais o discurso lírico da produção, que pode não ser de fácil digestão para os acostumados com o cinema contemporâneo, em que tudo é mastigado para o espectador. Porém, são estes signos que fazem esta obra ser tão imortal quanto o próprio homem que lhe dá título. Triste, mas não menos belo em sua imperfeição.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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