Crítica


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Sinopse

Nascida na Argélia, Fátima migrou para a França onde trabalha como empregada doméstica para sustentar as duas filhas adolescentes. Quando sofre um pequeno acidente, ela aproveita a oportunidade para quebrar certas barreiras.

Crítica

Trabalhar horas a fio como doméstica para dar uma vida digna às filhas. Esse parece ser o único propósito de Fatima (Soria Zeroual), imigrante argelina que tenta remar contra a maré numa sociedade muitas vezes abertamente avessa à sua cultura. Os entraves que os muçulmanos enfrentam na França são deflagrados já na cena inicial, na qual a funcionária da imobiliária dá uma desculpa esfarrapada para não oferecer à família o apartamento combinado, provavelmente por deparar-se com o lenço que recobre a cabeça da protagonista. Aliás, ali notamos a inclinação do diretor Philippe Faucon pela sutileza. Ele se vale de arroubos emocionais apenas quando as situações os tornam imprescindíveis. Fatima parte de sua personagem principal, das dificuldades que ela enfrenta no cotidiano, seja no âmbito doméstico ou mesmo no público, para desenhar um panorama infelizmente bastante próximo do que a realidade oferece. É um filme preocupado com pessoas, suas derrotas e vitórias.

Fatima possui duas filhas. A mais velha, Nesrine (Zita Hanrot), é uma aplicada estudante de medicina, que chega a deixar de lado qualquer possibilidade de lazer para justificar o sacrifício materno. A caçula, Souad (Kenza Noah Aïche), segue na direção oposta, demonstrando pouco interesse no que a escola pode lhe oferecer, constantemente desafiando Fatima, desrespeitando-a, inclusive com ofensas. Dito assim pode parecer que Fatima segue por um caminho fácil, mostrando a bondade de uma contrastando com agressividade da outra, o que está longe da verdade. Faucon estabelece gradativamente um percurso de tal maneira orgânico que não sobram espaços para classificações peremptórias. Afinal de contas, igualmente vemos Nesrine envergonhada diante do fato de sua mãe ser uma empregada doméstica e Souad segurando as pontas de acordo com suas capacidades adolescentes. A dinâmica entre as três é mais que uma relação convencional, ainda mais se a descolarmos da esfera literal.

Pode-se ler Fatima como uma alegoria, especialmente no que tange à representatividade da mulher muçulmana no seio de um território com altas doses de xenofobia, como o francês. Fatima, Nesrine e Souad são faces dessa entidade social maior, que explicita como o meio recebe e rechaça as suas singularidades. As jovens são, também, como que personificações simbólicas das possíveis respostas da protagonista aos múltiplos problemas enfrentados. A primogênita é o seu lado responsável, ciente da necessidade de esforço redobrado para sobressair numa coletividade que teima em achatar suas aspirações. Já a caçula é a réplica inconformada dela, aquela que não enxerga propósito em submeter-se a humilhações para sobreviver num entorno hostil. As ambiguidades se encarregam de matizar profundamente essas interações, desde as metafóricas às literais, não deixando que as coisas descambem à parcialidade ou ao maniqueísmo. Não há certos e errados, o que trata de engrandecer o filme.

Em meio à sensibilidade ao aspecto humano, que marca a encenação objetiva do longa-metragem, sobra espaço para críticas à própria cultura muçulmana, como nas vezes em que as vizinhas repreendem a filha mais velha por estudar e deixar a mãe sozinha. Todavia, Philippe Faucon evita jogar sobre as personagens, sejam elas principais, secundárias ou meras figurantes, o peso do julgamento, pois ações e reações são constituídas e mediadas por uma concepção a elas pré-existente, que está na base de suas educações. O ex-marido de Fatima, interpretado por Chawki Amari, surge ocasionalmente para botar panos quentes, mas sem possuir um peso decisivo, prostrando-se confortavelmente à margem.  Sua presença é tão e somente burocrática, pois Fatima é quem arca com o ônus e o bônus de encaminhar as filhas num mundo adverso à sua origem. Fatima abertamente enxerga as mulheres com admiração, ciente de que, na França ou na Argélia, nelas inevitavelmente recaem os maiores pesos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
8
Alysson Oliveira
7
MÉDIA
7.5

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