Crítica

Para os moradores do Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, lidar com enchentes já é parte da rotina. O bairro fica às margens do Rio Tietê, que transborda e invade as casas em alagamentos que já chegaram a durar meses. Uma situação como essa já ofereceria material suficiente para um documentário que pretendesse expor a negligência do Estado em relação à comunidade, mas o diretor Cristiano Burlan vai além: mais do que falar sobre as enchentes, Estopô Balaio quer contar as histórias de quem vive apesar delas.

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Longe de ser simplesmente uma crônica sobre uma região carente, o documentário vai revelando aos poucos o Jardim Romano como uma comunidade extremamente rica culturalmente. Com o incentivo do coletivo que dá nome ao filme, os moradores usam todo tipo de arte como forma de expressão. A montagem entrecorta as mais variadas performances – música, dança, teatro, poesia – com imagens do bairro e depoimentos emocionados, o que coloca o espectador dentro do cotidiano daquela comunidade e dá uma sensação de familiaridade com os personagens.

A arte aqui é tratada como algo libertador, ao mesmo tempo um escape de uma vida difícil e uma maneira de expressar a própria realidade. Todo o bairro parece engajado nos projetos do coletivo: as apresentações são feitas nas ruas e nas varandas das casas, a plateia transita entre as performances e também participa delas. Há um forte senso de comunidade pairando sobre todo o filme, resumido pela canção do grupo Família Nada Consta, que se apresenta caminhando pelo bairro: “nunca se esqueça da sua raiz, quando te disseram 'não' foi a única que te quis [...] já na burguesia não tem coletividade, só se tiver dinheiro pra poder ter amizade”.

Empregando um tom leve, apesar de tratar de uma realidade difícil, o filme dá espaço também para as crianças, que parecem tão acostumadas ao cotidiano árduo que falam tranquilamente diante das câmeras sobre a devastação causada pelas chuvas. “Essa já é a minha terceira enchente”, uma menina comenta casualmente, enquanto sua mãe mostra a sala de estar alagada, a água já na altura das canelas. Esse bom humor também transparece nas entrevistas das senhoras Luzia e Francisca, que se divertem com a ironia de terem deixado o nordeste do país numa tentativa de fugir da escassez da água, só para sofrerem com o excesso dela em São Paulo.

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Burlan encontra, entretanto, tempo para abordar as outras questões que permeiam as vidas de suas personagens. É dado grande destaque à dificuldade e a dor de abandonar a terra natal e a família por uma chance em São Paulo – a região tem enorme concentração de nordestinos – algo que é compartilhado também por membros do coletivo. De certa maneira, Estopô Balaio é mais um retrato da periferia de São Paulo como um todo do que de apenas um bairro. Há momentos em que o documentarista dá às pessoas a oportunidade de simplesmente desabafar e falar sobre questões que vão além das chuvas e das cheias do Tietê: são relatos dolorosos sobre perda, abusos sofridos e saudades.

Há, ainda, um questionamento ético levantado por um dos membros do coletivo Estopô Balaio que poderia se estender até o trabalho do documentarista. Ambos parecem conscientes do certo distanciamento que há entre as pessoas que vivem a realidade do Jardim Romano e as que fazem trabalhos sociais no lugar ou documentam seu cotidiano. "Hoje eu me vendo como pesquisa para os artistas", diz a letra de uma música sendo apresentada enquanto João Júnior, um dos organizadores do coletivo, pondera a respeito de seu próprio trabalho.

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A solução encontrada por Burlan parece ter sido deixar os rumos de seu filme nas mãos de suas personagens. Muitas vezes são os moradores que filmam seus depoimentos e suas performances, e a impressão que Estopô Balaio deixa no público é a de que – finalmente – a periferia está ganhando voz. Qualquer falta de cuidado técnico é compensada pela sinceridade com a qual cada morador conta sua história e mostra a própria vizinhança, onde a arte é como uma linha que costura toda uma comunidade em meio à adversidade.

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cursa Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo e é editora do blog Cine Brasil.
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