Crítica

Diferentemente de outros filmes ambientados na Segunda Guerra Mundial, em que a solenidade e o drama, às vezes extremos, dão o tom da narrativa, Esperança e Glória é conduzido por uma via mais afetiva, mesmo quando tudo parece ruir frente às eventuais tragédias que um conflito dessa magnitude inevitavelmente traz. Boa parte, porque a história é baseada em algumas lembranças do próprio diretor John Boorman. A Londres de então está de sobreaviso, aliás, toda Europa acompanha preocupada a ascensão de Hitler, sua sanha por conquistar territórios e ampliar domínios. Bill (Sebastian Rice-Edwards) testemunha a euforia patriótica do pai assim que o rádio noticia a entrada da Inglaterra na Segunda Guerra Mundial. O chefe da família se alista, deixando mulher e filhos em meio às sirenes que anunciam a iminência dos bombardeios germânicos, cada vez mais frequentes na terra da rainha.

Esperança e Glória é feito de memórias entrelaçadas. Mesmo não alienados da realidade difícil que os circunda, os pequenos se valem do lúdico para abrandar a dor e a miséria. Casas vizinhas ardem em chamas, mas no dia seguinte, blindada por certa inocência, a gangue dos meninos que se divertem bancando soldados faz a festa reduzindo escombros a cinzas, quebrando o que veem pela frente. Eles fingem ser parte do exército, mantém prisioneiros de brincadeira, exploram com curiosidade o sexo alheio, enfim, vivem plenamente suas condições de crianças. Boorman mostra a guerra através desses olhos infantis, filtrando o traumático pelas perspectivas menos pessimistas dos que ainda conseguem ver beleza, por exemplo, numa rua assolada pelo inimigo, na qual o brilho dos ataques é semelhante ao dos fogos de artifício. Longe de diminuir a visão crítica e amarga presentes, esse viés confere singularidade ao filme.

São muitos os exemplos ao longo da trama que ressaltam a importância da ficção. Em determinada cena, Bill é retirado do cinema, onde via um cinejornal que dava conta justamente dos últimos acontecimentos de guerra, em virtude de um toque de recolher. Ele protesta contra a realidade, dizendo que ela é menos atraente que o projetado na tela. Não se trata de uma fuga, mas do apego à capacidade da ficção de dar outros contornos aos fatos, por vezes mais interessantes e efetivos, até mesmo no que diz respeito ao registro para reflexão posterior. Esperança e Glória sublinha constantemente a importância da família, a resistência menos árdua quando os personagens estão na companhia dos seus. Irmãos, avós, tias, pai e mãe, além dos amigos, são como escoras ao garoto que cresce num cenário devastado, sustentáculos que lhe permitem ainda brincar.

As intervenções do narrador são sutis e pontuais, suficientes para deflagrar a memória como propulsora. Esperança e Glória não ambiciona registrar com fidedignidade a Segunda Guerra Mundial, as tensões políticas que colocaram nações em choque. John Boorman inventaria sua infância que, tornada filme, transcorre repleta de descobertas em paralelo à briga entre aliados e inimigos do Terceiro Reich. Como testemunha daqueles dias, o diretor leva às telas um relato compassivo e terno que, sem esconder o horror do entorno, se atém à pureza e ao otimismo, elementos necessários quando a esperança soa como um conceito abstrato e distante no horizonte marcado pela violência. Confrontado pelo passado, Boorman, ao invés de destacar a dor, evidencia a força dos que persistem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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