Crítica

O cenário de Epidemia de Cores é o Hospital São Pedro, em Porto Alegre, mais especificamente a ala onde se desenvolve a Oficina de Criatividade, função inspirada nos métodos de arteterapia criados pela renomada psiquiatra Nise da Silveira. A câmera do diretor Mário Eugênio Saretta se demora inicialmente na investigação visual desse ambiente antes denominado manicômio, portanto outrora centrado na ideia do encarceramento dos portadores de algum distúrbio mental. As paredes carcomidas pelo tempo, desgastadas pelo decurso da História, agora estão recobertas das cores aplicadas por pacientes e cuidadores, o que deflagra uma grande mudança, não apenas no que tange àquele espaço, mas também ao pensamento acerca do tratamento de tais pessoas, que necessitam de cuidados especiais. Ainda que não se detenha nessa transformação, evitando abordar frontalmente a luta antimanocomial, por exemplo, Saretta toca o suficiente no assunto para evocar sua urgência.

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Todos têm voz em Epidemia de Cores. Tomamos contato com a experiência dos funcionários, eles que dão depoimentos de como esse tipo de iniciativa (a arteterapia) favorece a evolução dos pacientes. Os próprios internos ganham o direito de explanar o que bem entendem, da forma como bem entendem, ora articulando, ora divagando. Saretta, assim, se torna íntimo desse universo muito idiossincrático, onde a riqueza de matizes e a possibilidade de expressão acabam sendo imprescindíveis ao avanço. Determinadas falas são marcantes, como a da mulher que sonha em participar do extinto Programa do Jô. Ela demonstra uma lucidez admirável sobre sua condição, bem como a respeito da importância do envolvimento com as diversas searas artísticas à eventual melhora. Registros aparentemente banais, mas que capturam a essência do cotidiano do São Pedro, entremeiam os relatos.

Epidemia de Cores se envolve de maneira terna com as atividades de num local antigamente caracterizado por técnicas ultrapassadas, como os eletrochoques. Essa fricção entre as velhas e as novas ferramentas não chega a ganhar destaque no documentário, mas aparece com potência na explanação de um dos que vivenciaram os anos de reclusão e de consequente isolamento, entre outras coisas. O senhor expõe com clareza a dificuldade de ter uma rotina de violências e de afastamento dos demais, exaltando, em meio à dolorosa rememoração, a realidade atual, na qual mantém relacionamentos de confiança. Esse mesmo homem critica o posicionamento de quem porventura o chama de louco, pois se considera em recuperação. Já outra paciente atribui a loucura a diversos comportamentos, em princípio, socialmente aceitos. São dois fragmentos que, juntos, nos permitem uma reflexão significativa.

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Ainda que não se aprofunde em alguns vieses complexos, Epidemia de Cores cativa pelo respeito com que se aproxima dos personagens.  Saretta se esforça – geralmente com sucesso – para extrair poesia daquele lugar, assim inoculando na narrativa algo dos preceitos que guiam a conduta dos profissionais crentes no poder da arte contra as mazelas da alma. A trilha sonora a cargo de Vinicius Correa auxilia na criação de uma atmosfera delicada, responsável por conferir ao filme uma leveza aparentemente dissonante de seu eixo temático. Os testemunhos de jovens estagiárias e de funcionárias mais experientes, que exaltam a pintura e a palavra como facilitadores de um processo lento e repleto de meandros, configuram a esfera informativa do filme, ainda que contenham boas cargas de emoção. Mas a realização de Saretta realmente cresce quando consegue extrair dos pacientes sua singularidade, o que nos faz pensar e, especialmente, questionar firmemente velhos conceitos e postulados.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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