Crítica

Há uma máxima entre os manuais de roteiro que afirma que não se deve nunca mostrar em cena um revólver a não ser que algum personagem pretenda usá-lo até o final da história. Afinal, cria-se uma expectativa tão grande em relação a sua presença que se o mesmo não for utilizado, tudo que restará será frustração. Por outro lado, exibi-lo com bastante antecedência serve apenas para antecipar o que está por vir, tornando o todo um tanto previsível. Esse mal, no entanto, é felizmente contornado pelo mexicano En La Estancia, longa de estreia na ficção do diretor e roteirista Carlos Armella, que dá esse primeiro passo tendo ao seu lado um importante nome de grife: um dos produtores executivos do filme é Alejandro González Iñarritu, vencedor do Oscar por Birdman (2014).

Exibido na mostra competitiva de longas-metragens estrangeiros no Festival de Cinema de Gramado, En La Estancia elabora sua trama a partir da relação que estabelece entre a interação de gêneros e uma sensação inquietante que vai gerando no espectador. Elaborado em três módulos – Espaço, Tempo e Estancia – o filme passeia pelos mais diversos formatos, explorando conceitos e linguagens de maneira bastante experimental. É um risco, que dependendo do formato como for exibido, pode ter reveses problemáticos. Aqui em Gramado, por exemplo, a sessão começou em torno das 23h30, após um outro longa e de dois curtas. O ritmo lento da condução do enredo e a proposta que em alguns momentos se aproxima da videoarte teve seu custo, afugentando espectadores pelo tarde da hora e pelo cansaço da maratona. Certamente, não eram as melhores condições para fazer jus ao belo e original trabalho que estava na tela.

Num primeiro momento, somos apresentados à pequena comunidade de Estancia, um vilarejo no interior mexicano completamente abandonado por seus moradores, sejam em busca de melhores condições de vida ou afugentados pela violência. Restam apenas duas pessoas – seu Jesus (Jesus Vallejo), de 93 anos, e o caçula, Juan Diego (Gilberto Barraza, de La Jaula de Oro, 2013). Os demais filhos foram embora construir suas próprias famílias, e a matriarca há muito faleceu. A dupla vira foco da atenção de Sebastian (Waldo Facco, de Marcelino Pão e Vinho, 2010), um cineasta amador que se interessa em realizar um documentário sobre a rotina deles naquele lugar esquecido por todos. Então, o que vemos é esse registro, no estilo found footage, com muita câmera na mão e improvisos, em que vão relatando suas origens, vivências e esperanças, ao mesmo tempo em que se aproximam do realizador, em uma troca mútua. Quando se afastam, fica apenas a promessa de um regresso breve, para poderem juntos dar continuidade ao que ali estava sendo iniciado.

Depois de um bloco intermediário, sem diálogos e apenas com uma coletânea aleatória de imagens que serve para indicar o quanto de tempo se passou, acompanhamos o regresso de Sebastian, agora ao lado da namorada grávida (Natalia Gatto). Ao chegarem lá, nada mais encontram – nem mesmo os últimos remanescentes. O antigo acordo não foi cumprido com o imediatismo que talvez fosse esperado por aqueles que ficaram para trás, e a solidão que permanece traz consigo um sentimento de angústia e dor. Há muitos questionamentos, e quase nenhuma resposta: por que voltaram? De que estão fugindo? Se o filme não foi terminado, qual a razão desse novo encontro? E para onde foram Juan Carlos e Jesus?

Assumindo um ponto de vista quase que inteiramente subjetivo, como se fôssemos alguém os observando à distância, o suspense crescente que se forma tem muito a oferecer ao projeto. Aqueles que conseguirem superar os capítulos iniciais e se dedicarem a essa conclusão serão recompensados por um cenário de desolação e desamparo, tanto nas paisagens quanto no interior de cada um destes personagens. E imaginar a explosão que se dará no último encontro entre eles não chega a ser uma tarefa das mais complicadas. Porém, o mais intrigante não são os fatos que se sucedem, e sim a forma como eles acontecem. E no final, quando percebemos o ciclo se fechando e antigas vontades enfim se realizando, percebemos o quanto as coisas realmente podem acontecer, mesmo que pelas linhas mais equivocadas. Não importando, para isso, o alto preço a ser pago.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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