Crítica

Imagine o paraíso na terra, pois o inferno deve se parecer com o que encontramos em O Clube. O clube do título se refere à casa amarela destinada a abrigar padres afastados do sacerdócio. Ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista, a escolha por instalá-la na pequena cidade litorânea de La Boca, no interior do Chile, não pretende proporcionar descanso aos moradores, mas esconder a maior chaga da igreja católica: a pedofilia.

O filme trata de trabalhar com a estratégia de desconstruir as aparências e revelar que as situações triviais guardam, no fundo, a complexa semente do mal. Temos um exemplo do recurso logo na abertura, quando a cena aparentemente banal do padre Vidal (Alfredo Casto), na praia com o cachorro Rayo, se revelará motivado não pela diversão, mas como parte do treino para a corrida de cachorros, o primeiro e mais perdoável dos vícios a qual a casa sucumbirá.

Escrito por Guillermo Calderón (Violeta Foi Para o Céu, 2011) e Daniel Villalobos, o roteiro desenvolve de forma irretocável a relação complexa entre o grupo de personagens diante de uma situação moral extrema. Depois de acomodar os personagens e dar um panorama geral do universo que o espectador está prestes a adentrar, a tensão inicia com a chegada do padre Lazcano (Jose Soza), que traz para as redondezas da casa Sandokan (Roberto Farías), um sujeito mentalmente desequilibrado pelos abusos sofridos. A força a tomar conta de O Clube pode ser experimentada desde a sequência a seguir, quando o diretor Pablo Larraín consegue um impressionante trabalho de mise-en-scène. Ao som de Sandokan descrevendo aos gritos a relação a qual foi forçado, a expressão do padre toma conta da tela. Os demais, medrosos e envergonhados, alcançam-lhe um revólver para que assuste o vizinho inconveniente. O padre pressiona o gatilho, mas a arma não aponta para a vítima, mas para a cabeça do culpado. O sangue na calçada de La Boca é um mancha difícil de retirar.

O Vaticano acaba instigado pela morte e envia o padre Garcia (Marcel Alonso) para investigar a situação. Fruto da Nova Igreja, denominação que sutilmente basta para condenar a ordem religiosa anterior, o personagem de Alonso representa os valores contrários. Como sugere a abertura do filme, na citação de Gênesis, Garcia está para a luz, assim como Vidal, Lazcano, Silva (Jaime Vadell), Ortega (Alejandro Goic), Ramirez (Alejandro Sieveking) e mesmo Monica (Antonia Zegers), missionária acusada de espancar o filho adotado, estão para as trevas.

Larraín constrói – e não poderia ser muito diferente – uma atmosfera sombria. A fotografia de Sergio Armstrong trabalha em um registro muito peculiar, capturando o mínimo de luz possível. Junto ao preto, um azul frio e um branco apático tomam conta das cenas, evitando qualquer tipo de conforto visual. O elenco impressiona tanto pela intensidade com que desenvolve os diálogos quanto com o trabalho expressivo, muitas vezes comunicando com mais precisão pelo cansaço e decepção dos rostos do que por qualquer linha. A edição de Sebastian Sepúlveda, discreta no transcorrer do longa, mostra a que veio quando exigida, como na cena em que Sandokan é perseguido por parte da cidade.

Espécie de Homens e Deuses (2010) ao contrário, O Clube é o mais próximo de um tribunal humano para os crimes cometidos em nome de Deus. Porta do inferno, La Boca é o projeto moderno dantesco do diretor chileno, em que as irrecuperáveis almas rebaixadas não congelam, mas boiam nas águas frias do Pacífico.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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