Crítica


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Sinopse

Depois de 12 anos sem juntar-se à família, um jovem escritor resolve fazer parte de uma confraternização em que todos estarão presentes para anunciar que vai morrer em breve.

Crítica

O cinema de Xavier Dolan é construído basicamente em torno das relações familiares. Mãe e filho, marido e esposa, genro e sogros, ou até mesmo novas famílias, formadas por amigos muito próximos. Sua habilidade, tanto como diretor e roteirista, já foi atestada várias vezes, seja nos festivais de Cannes (8 troféus) ou Veneza (um prêmio da crítica), no Canadian Screen Awards (5 vitórias) ou no César (uma estatueta), ou ainda em lugares como Bangkok, Guadalajara, Hamburgo, Istanbul, Roterdã, Reykjavik, Estocolmo, Toronto, Vancouver ou Sydney, entre tantos outros. Por isso a expectativa gerada a cada novo trabalho por ele assinado. Em É Apenas o Fim do Mundo, seu sexto longa como realizador, ele vai ao extremo de sua proposta comum, obrigando seu protagonista a lidar com todas essas figuras: mãe, irmãos, cunhada. E os confrontos, por mais banais que sejam, são inegavelmente hipnotizantes.

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Louis está voltando para casa. Há mais de uma década afastado, ele partiu para, enfim, viver sua vida. O retorno, no entanto, não é simples. Há muita dor envolvida, tanto da parte dele, como dos seus parentes. Mas eles farão de tudo para escondê-la. Não é momento para lavar roupa suja. Ou ao menos dessa forma tentam agir, ainda que nos primeiros instantes juntos. Pois, acima de tudo, estes reunidos no hall de entrada são seres humanos. E, por isso, passíveis de falhas. Problemáticos, complicados, perturbados. Receosos, tristes, angustiados. A distância entre eles foi muito grande, e durou tempo demais. Não será fácil eliminá-la de uma hora para outra, como uma porta que se abre e um passo que se dá. É preciso ter calma. De ambas as partes.

O que motiva o regresso de Louis é a proximidade do fim. Para ele, no seu horizonte está apenas o desfecho. Diagnosticado com uma doença fatal, não lhe resta muito tempo. E este é o seu objetivo: compartilhar sua situação com a mãe e irmãos. Mas terá ele esse direito? Afastado há tantos anos, como chegar agora e jogar essa bomba no meio da sala? Ninguém desconfia dos seus motivos. Afinal, estão preocupados demais com suas próprias mágoas. A matriarca, que sempre viu nele algo especial, que ia além dos seus limites e sabia que não muito permaneceria na barra de sua saia, procura ser a mais compreensiva. Mas está consternada não apenas com a presença dele ali outra vez, mas com as reações dos demais filhos. O mais velho, por sua vez, tenta ser duro, sem brechas, ainda que essas insistam em se manifestar. A caçula, que muito dele criou em sua imaginação, deixa claro, desde o primeiro encontro, o quão excitada está com a reunião. Já a novata naquele seio, a esposa do irmão, é toda cuidados, pois não sabe ainda seu lugar naquela nova formação. Até onde ela pode ir? Como se dará a ligação entre eles? Estão todos pisando em ovos. Quem quebrará o primeiro?

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Gaspard Ulliel, excepcional como o personagem título da cinebiografia Saint Laurent (2014), assume mais um protagonista à altura do seu talento. Este aqui, no entanto, é construído nos detalhes, sem arroubos. Está tudo no seu olhar, no não dito, no calado. Vincent Cassel, como o primogênito, veste com conforto o tipo estourado e irritadiço que tantas vezes defendeu em sua carreira. Parece entregar apenas mais do mesmo, até o momento em que, no monólogo dentro do carro ao lado do irmão, coloca em evidências as razões de ser considerado um dos melhores atores franceses da atualidade. Léa Seydoux é a irmã, e entre lágrimas e sorrisos, desculpas e cobranças, atinge o grau exato de uma juventude em ebulição, quando qualquer migalha pode significar um mundo novo que se abre. Marion Cotillard é a recém chegada da família, e o talento da atriz vencedora do Oscar é posto à prova a cada inserção dela no drama vivido em cena. Tem aqui um trabalho de contenção, em que dá a impressão de ter muito a dizer, porém pouco faz – está tudo nas entrelinhas.

O show, no entanto, é mesmo da veterana Nathalie Baye. Ela, que já foi musa de Truffaut, Godard e até de Spielberg, retoma a parceria com Dolan após Laurence Anyways (2012), em uma participação determinante. Ainda que pareça estar alheia a tudo que vai se passando ao seu redor, é o centro que liga os demais personagens, inserindo vida naqueles relacionamentos. O momento em que está, enfim, sozinha com o filho desgarrado e ousa, ainda que por instantes, lhe dizer a verdade que ela mesma tem problemas de enfrentar, é de arrepiar qualquer um. É a partir desta passagem que é oferecida ao espectador a chave desta experiência tortuosa, por vezes nauseante, mas absolutamente imprescindível. Há muito grito, rompantes, debates. Discute-se tudo, questiona-se qualquer coisa, tudo que possa servir de distração e evitar o elefante diante de todos e ao qual ninguém deseja tornar real. Ao manipular cada uma destas figuras, o diretor não só brinca com a atenção da audiência, como também nos coloca no cerne desta jornada, como se o sofrimento da ficção estivesse ao alcance de cada um do lado de cá da tela.

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Vencedor do Grande Prêmio do Júri – e do troféu do Júri Ecumênico – no Festival de Cannes 2016, É Apenas o Fim do Mundo foi escolhido também como o representante oficial do Canadá no Oscar 2017. É pouco provável, no entanto, que consiga uma indicação como Melhor Filme Estrangeiro – se o anterior, e levemente superior, Mommy (2014), não alcançou este feito, as chances dessa vez não parecem melhores. Tal perspectiva, no entanto, é mais em demérito da Academia de Cinema de Hollywood, e menos às qualidades deste trabalho. Xavier Dolan não faz cinema fácil, e ainda que já tenha chocado antes de forma gratuita, o impacto que provoca aqui é mais profundo, interno e penoso. Ele permanece e não se desfaz no ar. Afinal, colocar um ponto final pode ser uma atitude gratificante pra muita gente. Mas seria essa uma decisão a se tomar de forma solitária? A resposta, enfim, parece estar mais no processo do que na linha de chegada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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