Crítica

Depois de pagar parte de sua dividida com a sociedade, William Garnet (Forest Whitaker) é solto em regime condicional. Preso por assassinar um policial a sangue frio, ele se converte ao Islã e decide mudar radicalmente, usando a religiosidade como forma de controlar a ira. A imagem de tons terrosos, fruto da fotografia esmerada de Yves Cape, é apropriada para registrar a cidadezinha do Novo México onde há areia e desolação até perder de vista. Em Dois Homens Contra Uma Cidade, o cineasta francês Rachid Bouchareb aborda o velho tema da segunda chance, com o personagem de Whitaker ancorado no arrependimento. De vez em quando sua sofreguidão dá lugar ao vislumbre de um futuro diferente. Porém, o xerife vivido por Harvey Keitel, movido pela vingança, tenta de tudo para tirar o animal da toca e provar à comunidade que ele deveria permanecer atrás das grades.

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O começo de Dois Homens Contra Uma Cidade é bastante promissor. O embate velado se impõe como dinâmica motriz da narrativa, via pela qual transitam o suspense, a violência e talvez até a redenção. O protagonista é uma bomba relógio prestes a explodir, acuado pelo entorno hostil que não lhe concede, ao menos, o privilégio da dúvida. A chegada de uma nova agente de condicional, interpretada por Brenda Blethyn, adiciona outras possibilidades, como a dimensão da lei verdadeiramente atenta à reinserção social dos ex-detentos, contrastando, assim, com a pressão incessante exercida pelo xerife. Contudo, as interações dela, seja com Garnet, aconselhando-o para que consiga se estabelecer num meio tão preconceituoso, ou com a autoridade local, de quem discorda veementemente, não atingem grande relevância. Aliás, no filme de Bouchareb o potencial se esvai gradativamente.

Como de costume, o trabalho de Forest Whitaker é sólido, repleto de nuances que tornam ainda mais trágico o destino anunciado de seu personagem. Infelizmente o mesmo não pode ser dito dos veteranos Harvey Keitel e Ellen Burstyn. O xerife dele é obstinado e austero, mas, em contrapartida, possui hombridade, a despeito do quase sadismo no trato com o homem em liberdade assistida. Já a ela é guardado um papel minúsculo, cuja função, a priori, seria reconectar o protagonista com as raízes de sua delinquência, oferecendo timidamente uma tentativa de explicação dos rumos erráticos que ele tomou. Todavia, o roteiro de Bouchareb e Olivier Lorelle não lhes fornece material suficiente, ao contrário, pois os prende em situações muitas vezes insípidas. Blethyn é, fora o próprio Whitaker, quem consegue transcender melhor as limitações e se destacar, justo por sua presença cênica ser bem explorada.

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Remake do filme homônimo de 1973 dirigido por José Giovanni com Alain Delon e Jean Gabin no elenco, Dois Homens Contra Uma Cidade promete bem mais que cumpre. Entre os pontos negativos, o envolvimento trôpego de Garret com a funcionária do banco é o mais evidente. Rachid Bouchareb precipita esse vínculo afetivo, desenvolvendo-o sem representatividade genuína. A única função do namoro insosso é, mais adiante, provocar a recaída definitiva. O desagravo nos é vendido como algo aceitável, ainda que, no fim das contas, nada mais seja que uma variação do comportamento reprovável do xerife. A trama transcorre num ritmo morno, as emoções não se impõem como imprescindíveis à constituição das pessoas envolvidas na tentativa de Garret provar-se regenerado. Se há alguma mensagem cozinhada nesse fogo brando, é que acima da vontade está a natureza. Um bicho acuado será sempre perigoso, mesmo querendo-se manso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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